Por Machado de Assis (1874)
— Mas por que desespera? disse a inglesa. Tenha ânimo, e tudo se há de arranjar. Pela minha parte, oxalá pudesse contribuir para a completa felicidade desta família, a quem devo tantos e tamanhos benefícios.
— Benefícios!
— E que outra coisa são os seus carinhos, a proteção que me tem dado, a confiança...
— Está bom, está bom, interrompeu afetuosamente a baronesa; falemos de outra coisa.
— Dela, não é? Diz-me o coração que com alguma paciência tudo se alcançará. Todos os meios se hão de tentar; e todos eles são bons se trata de fazer a felicidade sua e dela. Bem está o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juízo. Por enquanto só vejo um obstáculo: a pouca disposição...
— Só esse?
— Que outro mais?
— Talvez outro, disse a baronesa abaixando a voz; pode ser que não, mas tão infeliz sou neste meu desejo, que há de vir a ser obstáculo, talvez. — Mas que é?
— Um homem, um moço, não sei quem, sobrinho da mestra que foi de Guiomar... Ela mesma contou-me tudo há pouco.
— Tudo o quê?
— Não sei se tudo; mas enfim disse-me que, estando a passear na chácara, vira o tal sobrinho da mestra, junto à cerca do Dr. Luís Alves, e ficara a conversar com ele. Que será isto, Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recomeça agora, -- agora, que ela já não é a simples herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha filha, a filha do meu coração.
— A comoção da baronesa ao proferir estas palavras era tal, que Mrs. Oswald pegou-lhe afetuosamente das mãos e procurou confortá-la com outras palavras de esperança e confiança. Disse-lhe, além disso, que o simples conversar com esse homem, que aliás nenhuma delas conhecia, não era razão para supor uma paixão anterior.
— Enfim, concluiu a inglesa, custa-me crer que ela ame a alguém neste mundo. Por enquanto estou que não gosta de ninguém, e a nossa vantagem não é outra senão essa. Sua afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do entusiasmo à frieza, e da confiança ao retraimento. Há de vir a amar, mas não creio que tenha grandes paixões, ao menos duradouras. Em todo o caso, posso responder-lhe atualmente pelo seu coração, como se tivesse a chave na minha algibeira.
A baronesa abanou a cabeça.
— Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem é ele, e que relações de afeto houve no passado.
— Parece-lhe possível?
— Naturalmente!
A inglesa proferiu esta única palavra com a segurança necessária para serenar o ânimo da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasmada para ela, como quem refletia.
— Há ocasiões, disse enfim a baronesa ao cabo de alguns segundos de silêncio, há ocasiões em que eu quase chego a sentir remorsos do amor que tenho a Guiomar. Ela veio preencher na minha vida o vácuo deixado por aquela pobre Henriqueta, a filha das minhas entranhas, que a morte levou consigo, para mal de sua mãe. Se havia de ser infeliz, melhor é que a chore morta, com a esperança de a ir encontrar no céu. Mas não lhe quis mais, nem talvez tanto, como a esta criança, que levei à pia, e de quem Deus me fez mãe...
A baronesa calou-se; ouvira passos no corredor.
Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com tão singelos meios o fizera, que não desdizia daquele matinal desalinho em que o leitor a viu no capítulo anterior. O penteado era um capricho seu, expressamente inventado para realçar a um tempo a abundância dos cabelos e a senhoril beleza da testa. As pontas bordadas de um colarinho de cambraia dobravam-se faceiramente sobre o azul do vestido de glacê, talhado e ornado com uma simplicidade artística. Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel, — um dos mais belos painéis que havia por aqueles tempos em toda a Praia de Botafogo.
— Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu assomar à porta da saleta.
E Guiomar sorriu com tanta satisfação e gozo ao ouvir-lhe esta saudação familiar, que um observador atento hesitaria em dizer se era aquilo simples vaidade de moça, ou se alguma coisa mais.
A baronesa pôs os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a moça reparou, e que a tornaram séria durante alguns rápidos segundos. Mas sorriu depois; e pegando das mãos da madrinha deu-lhe dois beijos no rosto, com tanta ternura e tão sincera, que a boa senhora sorriu de contentamento.
— Não precisa falar, disse Guiomar, já sei que me acha bonita. É o que me diz todos os dias, com risco de me perder, porque se eu acabo vaidosa, adeus, minhas encomendas, ninguém mais poderá comigo.
Guiomar disse isto com tanta graça e singeleza, que a madrinha não pôde deixar de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almoço chamou-as a outros cuidados, e a nós também, amigo leitor. Enquanto as três almoçam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald.
CAPÍTULO V
MENINICE
(continua...)
ASSIS, Machado de. A mão e a luva. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1874.