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#Contos#Literatura Brasileira

A Mágoa do Infeliz Cosme

Por Machado de Assis (1875)

Machado de Assis (1839–1908), mestre do realismo brasileiro, publicou A mágoa do infeliz Cosme em 1875, no Jornal das Famílias. O conto aborda com fina ironia e sutileza os sentimentos de luto, amor e ciúme, explorando as contradições humanas diante da perda e da memória. A narrativa combina humor e melancolia, características marcantes da fase inicial do autor.

I

Imensa e profunda foi a mágoa do infeliz Cosme. Depois de três anos de não interrompida ventura, faleceu-lhe a mulher, ainda na flor da idade, e no esplendor das graças com que a dotara a natureza. Uma rápida moléstia a arrebatou aos carinhos do esposo e à admiração de quantos tiveram a honra e o prazer de praticar com ela. Quinze dias apenas esteve de cama; mas foram quinze séculos para o infeliz Cosme. Por cúmulo de desgraças, expirou longe dos olhos dele; Cosme saíra para ir buscar a solução de um negócio; quando chegou à casa achou um cadáver.

Dizer a aflição em que este acontecimento lançou o infeliz Cosme pediria outra pena que não a minha. Cosme chorou logo no primeiro dia todas as suas lágrimas; no dia seguinte tinha os olhos exaustos e secos. Os seus numerosos amigos contemplavam com tristeza o rosto do infeliz e ao lançar a pá de terra sobre o caixão já depositado no fundo da cova, mais de um recordou os dias que passara ao pé dos dois esposos, tão queridos um do outro, tão venerados e amados dos seus íntimos.

Cosme não se limitou ao encerramento usual dos sete dias. A dor não é costume, dizia ele aos que o iam visitar; sairei daqui quando puder arrastar o resto dos meus dias. Ali ficou durante seis semanas, sem ver a rua nem o céu. Os seus empregados iam prestar lhe contas, a que ele, com incrível esforço, prestava religiosa atenção. Cortava o coração ver aquele homem ferido no que havia de mais caro para ele, discutir às vezes um erro de soma, uma troca de algarismos. Uma lágrima às vezes vinha interromper a operação. O viúvo lutava com o homem do dever.

Ao cabo de seis semanas resolveu sair à rua o infeliz Cosme.

- Não estou curado, dizia ele a um compadre; mas é preciso obedecer às necessidades da vida.

- Infeliz! exclamou o compadre apertando-o nos braços.

II

Na véspera de sair foi visitá-lo um moço de vinte e oito anos, que podia ser seu filho, porque o infeliz Cosme contava quarenta e oito. Cosme conhecera o pai de Oliveira e fora seu companheiro nos bons tempos da mocidade. Oliveira afeiçoou-se ao amigo de seu pai, e freqüentava-lhe a casa ainda antes do casamento.

- Sabe que vou casar? disse um dia Cosme a Oliveira.

- Sim? Com quem?

- Adivinhe.

- Não posso.

- Com D. Carlota.

- Aquela moça a quem me apresentou ontem no teatro?

- Justo.

- Dou-lhe meus parabéns.

Cosme arregalou os olhos de contente.

- Não lhe parece que faço boa escolha?

- Uma excelente moça: formosa, rica...

- Um anjo!

Oliveira puxou duas fumaças do charuto e observou:

- Mas como arranjou isso? Nunca me falou em tal. Verdade é que sempre o conheci discreto; e meu pai costumava dizer que o senhor era uma urna inviolável. - Por que motivo andaria eu a bater com a língua nos dentes?

- Tem razão...

- Este casamento há de dar que falar, porque eu já estou um pouco maduro. - Oh! não parece.

- Mas estou; cá tenho já os meus quarenta e cinco. Não os mostro, bem sei; apuro-me no vestir, e não tenho um fio de cabelo branco.

- E conta ainda um mérito mais: é experiente.

- Dois méritos: experiente e sossegado. Não estou na idade de andar correndo a via sacra e dando desgosto à família, que é o defeito dos rapazes. Parece-lhe então que seremos felizes?

- Como dois eleitos do céu.

Cosme, que ainda não era o infeliz Cosme, esfregou as mãos de contentamento e manifestou a opinião de que o seu jovem amigo era um espírito sensato e observador. Efetuou-se o casamento com assistência de Oliveira, que, apesar da mudança de estado do amigo de seu pai, não deixou de lhe freqüentar a casa. De todos os que lá iam era o que tinha maior intimidade. Suas boas qualidades lhe davam jus à estima e veneração. Desgraçadamente era moço e Carlota era bela. Oliveira, ao cabo de alguns meses, sentiu-se loucamente apaixonado. Era honrado e viu a gravidade da situação. Quis evitar o desastre; deixou de freqüentar a casa de Cosme. Cerca de cinqüenta dias deixou de lá ir, até que o amigo o encontrou e à viva força o levou a jantar.

A paixão não estava morta nem caminhava para isso; a vista da bela Carlota não fez mais do que converter em incêndio o que já era braseiro.

Eu desisto de contar as lutas em que andou o coração de Oliveira durante todo o tempo que viveu a esposa de Cosme. Evitou ele manifestar nunca à formosa dama o que sentia por ela; um dia, porém, tão patente era o seu amor, que ela claramente lho percebeu. Uma leve sombra de vaidade fez com que Carlota não descobrisse com maus olhos o amor que inspirara ao rapaz. Não tardou, porém, que a reflexão e o sentimento da honra lhe mostrassem todo o perigo daquela situação. Carlota mostrou-se severa com ele, e este recurso fez ainda mais aumentar as disposições respeitosas em que se achava Oliveira.

- Tanto melhor! disse ele consigo.

(continua...)

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