Letras+ | Letródromo | Letropédia | LiRA | PALCO | UnDF


Compartilhar Reportar
#Romances#Literatura Brasileira

A Mão e a Luva

Por Machado de Assis (1874)

Estêvão tocou-lhe levemente na mão, fina e macia, e inclinou-se respeitoso. A moça caminhou para casa. Ele acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ela, desta vez a passo acelerado, resvalava por entre as árvores até subir as escadas da casa. Viu-a dar o braço à madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez.

Estêvão ainda ficou algum tempo encostado à cerca, na esperança de que ela olhasse ou dirigisse os passos para aquele lado; ela porém, passou indiferente, como se nem da existência dele soubera. Estêvão retirou-se dali cabisbaixo e triste, batido de contrários sentimentos, cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o eco vago e surdo desta interrogação:

— Entro num drama ou saio de uma comédia?

CAPÍTULO IV

LATET ANGUIS

O passeio da baronesa durou pouco mais de meia hora. O sol começava a aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chácara, o calor aconselhava à boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o braço, e ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa.

— Parece muito tarde, Guiomar, disse a baronesa ao cabo de alguns segundos.

— E é, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um encontro que tive aqui na chácara.

— Um encontro?

— Um homem.

— Algum ladrão? perguntou a madrinha parando.

— Não, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, não era ladrão. A minha mestra de colégio... sabe que morreu?

— Quem disse isso?

— O sobrinho, o tal sujeito que encontrei aqui hoje.

— Você está zombando comigo! Um homem na chácara?

— Não era bem na chácara, mas no jardim do Dr. Luís Alves. Estava encostado à cerca; trocamos algumas palavras.

A baronesa olhou para ela alguns segundos.

— Mas, menina, isso não é bonito. Que diriam se os vissem?... Eu não diria nada, porque conheço o que você vale, e sei a discrição que Deus lhe deu. — Mas as aparências... Que qualidade de homem é esse sobrinho?

Interrompeu-as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco anos, alta e magra, cabelo entre louro e branco, olhos azuis, asseadamente vestida, a Sra. Oswald, — ou mais britanicamente, Mrs. Oswald, — dama de companhia da baronesa, desde alguns anos. Mrs. Oswald conhecera a baronesa em 1846; viúva e sem família, aceitou as propostas que esta lhe fez. Era mulher inteligente e sagaz, dotada de boa índole e serviçal. Antes da ida de Guiomar para a companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presença de Guiomar, que a baronesa amava extremosamente, alterou um pouco a situação.

— São nove horas! disse de longe a inglesa; pensei que hoje não queriam voltar para casa. O calor está forte; e a senhora baronesa sabe que não é conveniente expor-se aos ardores do sol, sobretudo neste tempo de epidemias.

— Tem razão, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que o passeio começou tarde.

— Por que me não mandou chamar?

— Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott... — Milton, emendou gravemente a inglesa; esta manhã foi dedicada a Milton. Que imenso poeta, D. Guiomar!

— Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e lá dentro a ouviremos com melhor disposição.

Foram as três andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era vasta, com seis janelas para a chácara. Dali seguiram para uma saleta, onde a baronesa sentou-se na sua poltrona, a escapar a hora do almoço. Guiomar saiu para ir cuidar da toilette; e a baronesa que desde alguns minutos estivera cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs. Oswald, sem dizer palavra.

Era ela uma senhora de cinqüenta anos, refeita, vestida com esse alinho e esmero da velhice, que é um resto da elegância da mocidade. Os cabelos, cor de prata fosca, emolduravam-lhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, não por desgostos, que os não tivera, mas pelos anos. Os olhos luziam de muita vida, e eram a parte mais juvenil do rosto.

Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser igualmente feliz desde o dia do noivado até o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas já lá iam alguns anos, e da crua dor que tivera ficara-lhe agora a consolação da saudade.

— Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a sós, disse ela à inglesa, que se achava a alguns passos de distância.

Mrs. Oswald foi até a porta espreitar se viria alguém e voltou a sentar-se ao pé da baronesa. A baronesa estava outra vez pensativa, com as mãos cruzadas no regaço e os olhos no chão.

Estiveram as duas ali silenciosas alguns dois ou três minutos. A baronesa despertou enfim das reflexões, e voltou-se para a inglesa:

— Mrs. Oswald, disse ela, parece estar escrito que não serei completamente feliz. Nenhum sonho me falhou nunca; este, porém, não passará de sonho, e era o mais belo de minha velhice.

(continua...)

« Primeiro‹ Anterior...678910...Próximo ›Último »
Baixar texto completo (.txt)

← Voltar← AnteriorPróximo →