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#Contos#Literatura Brasileira

Antes que Cases

Por Machado de Assis (1875)

A resposta era elástica. Alfredo tomou-a ao pé da letra e abraçou a mulher. Naquele mesmo dia vieram para a casa da tia e foram ao teatro.

A nova peça do Ginásio aborreceu tanto o marido quanto agradou à mulher. Ângela parecia fora de si de contente. Quando caiu o pano no último ato, disse ela ao esposo: — Havemos de vir outra vez.

— Gostaste?

— Muito. E tu?

— Não gostei, respondeu Alfredo com evidente mau humor.

Ângela levantou os ombros, com o ar de quem dizia:

— Gostes ou não, hás de cá voltar.

E voltou.

Este foi o primeiro passo de uma carreira que parecia não acabar mais. Ângela era um turbilhão.

A vida para ela estava fora de casa. Em casa morava a morte, sob a figura do aborrecimento. Não havia baile a que faltasse, nem espetáculo, nem passeio, nem festa célebre, e tudo isto cercado de muitas rendas, jóias e sedas, que ela comprava todos os dias, como se o dinheiro nunca devesse acabar.

Alfredo esforçava-se por atrair a mulher à esfera dos seus sentimentos românticos; mas era esforço vão.

Com um levantar de ombros, Ângela respondia a tudo.

Alfredo detestava principalmente os bailes, porque era quando a mulher menos lhe pertencia, sobretudo os bailes dados em casa dele.

Às observações que ele fazia nesse sentido, Ângela respondia sempre: — Mas são obrigações da sociedade; se eu quisesse ser freira metia-me na Ajuda. — Mas nem todos...

— Nem todos conhecem os seus deveres.

— Oh! a vida solitária, Ângela! a vida para dois!

— A vida não é um jogo de xadrez.

— Nem um arraial.

— Que queres dizer com isso?

— Nada.

— Pareces tolo.

— Ângela...

— Ora!

Levantava os ombros e deixava-o sozinho.

Alfredo era sempre o primeiro a fazer as pazes. A influência que a mulher exercia nele não podia ser mais decisiva. Toda a energia estava com ela; ele era literalmente um fâmulo da casa.

Nos bailes a que iam, o suplício além de ser grande em si mesmo, era aumentado com os louvores que Alfredo ouvia fazer à mulher.

— Lá está Ângela, dizia um.

— Quem é?

— É aquela de vestido azul.

— A que se casou?

— Pois casou?

— Casou, sim.

— Com quem?

— Com um rapaz bonachão.

— Feliz mortal!

— Onde está o marido?

— Caluda! está aqui: é este sujeito triste que está consertando a gravata... Estas e outras considerações irritavam profundamente Alfredo. Ele via que era conhecido por causa da mulher. A pessoa dele era uma espécie de cifra. Ângela é que era a unidade.

Não havia meio de se recolher cedo. Ângela entrando num baile só se retirava com as últimas pessoas. Cabia-lhe perfeitamente a expressão que o marido empregou num dia de mau humor:

— Tu espremes um baile até o bagaço.

As vezes estava o mísero em casa, descansando e alegremente conversando com ela, abrindo todo o pano à imaginação. Ângela, ou por aborrecimento, ou por desejo invencível de passear, ia vestir-se e convidava o marido a sair. O marido já não recalcitrava; suspirava e vestia-se. Do passeio voltava ele aborrecido, e ela alegre, além do mais porque não deixava de comprar um vestido novo e caro, uma jóia, um enfeite qualquer.

Alfredo não tinha forças para reagir.

O menor desejo de Ângela era para ele uma lei de ferro; cumpria-a por gosto e por fraqueza.

Nesta situação, Alfredo sentiu necessidade de desabafar com alguém. Mas esse alguém não aparecia. Não lhe convinha falar ao Tibúrcio, por não querer confiar a um estranho, embora amigo, as suas zangas conjugais. A tia de Ângela parecia apoiar a sobrinha em tudo. Alfredo lembrou-se de pedir conselho a Epaminondas.

VIII

Epaminondas ouviu atentamente as queixas do primo. Achou-as exageradas, e foi o menos que lhe podia dizer, porque no seu entender eram verdadeiros despropósitos. — O que você quer é realmente impossível.

— Impossível?

— Decerto. A prima está moça, quer naturalmente divertir-se. Por que razão há de viver como freira?

— Mas eu não peço que viva como freira. Quisera vê-la mais em casa, menos aborrecida quando está só comigo. Lembra-se da nossa briga do domingo?

— Lembro-me. Você queria ler-lhe uns versos e ela respondeu que não a aborrecesse. — Que tal?...

Epaminondas recolheu-se a um eloqüente silêncio.

Alfredo esteve também algum tempo calado. Enfim:

— Estou resolvido a usar da minha autoridade de marido.

— Não caia nessa.

— Mas então devo viver eternamente nisto?

— Eternamente já vê que é impossível, disse Epaminondas sorrindo. Mas veja bem o risco que corre. Eu tive uma prima que se vingou do marido por uma dessas. Parece incrível! Cortou a si mesma o dedo mínimo do pé esquerdo e deu-lhe a comer com batatas.

— Está brincando...

— Estou falando sério. Chamava-se Lúcia. Quando ele reconheceu que efetivamente tinha devorado a carne da sua carne, teve um ataque.

— Imagino.

— Dois dias depois expirou de remorsos. Não faça tal; não irrite uma mulher. Dê tempo ao tempo. A velhice há de curá-la e trazê-la a costumes pacíficos.

Alfredo fez um gesto de desespero.

— Sossegue. Também eu fui assim. Minha finada mulher...

— Era do mesmo gosto?

— Do mesmíssimo. Quis contrariá-la. Ia-me custando a vida.

— Sim?

(continua...)

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