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#Contos#Literatura Brasileira

A Parasita Azul

Por Machado de Assis (1872)

De Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o conto "A Parasita Azul" narra a volta do jovem médico Camilo de Paris a Goiás e sua disputa pelo amor da enigmática Isabel. O tema aborda o contraste entre o cosmopolitismo europeu e o provincianismo brasileiro, a paixão romântica e as ironias do destino. Foi publicado originalmente em folhetins no Rio de Janeiro no Jornal das Famílias, entre junho e setembro de 1872, sob o pseudônimo Job. O conto foi reunido na coletânea Histórias da Meia-Noite (1873).

CAPÍTULO I

VOLTA AO BRASIL

Há cerca de dezesseis anos, desembarcaram no Rio de Janeiro, vindo da Europa, o Sr. Camilo Seabra, goiano de nascimento, que ali fora estudar medicina e voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudade no coração. Voltava de uma ausência de oito anos, tendo visto e admirado as principais coisas que um homem pode ver e admirar por lá, quando não lhe falta gosto nem meios. Ambas as coisas possuía, e se tivesse também, não digo muito, mas um pouco mais de juízo, houvera gozado melhor do que gozou, e com justiça poderia dizer que vivera.

Não abonava muito seus sentimentos patrióticos o rosto com que entrou a barra da capital brasileira. Trazia-o fechado e merencório, como que abafa em si alguma coisa que não é exatamente a bem-aventurança terrestre. Arrastou um olhar aborrecido pela cidade, que ia se desenrolando à proporção que o navio se dirigia ao ancoradouro. Quando veio a hora de desembarcar, fê-lo com a mesma alegria com que o réu transpõe os umbrais do cárcere. O escaler afastou-se do navio, em cujo mastro flutuava uma bandeira tricolor. Camilo murmurou consigo:

– Adeus, França!

Depois envolveu-se num magnífico silêncio e deixou-se levar para terra.

O espetáculo da cidade, que ele não via há tanto tempo, sempre lhe prendeu um pouco a atenção. Não tinha porém dentro da alma o alvoroço de Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era antes pasmo e tédio. Comparava o que via agora com o que vira durante longos anos, e sentia mais e mais apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o mimava. Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e ali determinou passar alguns dias, antes de seguir para Goiás. Jantou solitário e triste, com a mente cheia de mil recordações do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior desafogo à memória, apenas acabado o jantar, estendeu-se num canapé, e começou a desfiar consigo mesmo um rosário de cruéis desventuras.

Na opinião dele, nunca houvera mortal que mais dolorosamente experimentasse a hostilidade do destino. Nem no martirológico cristão, nem nos trágicos gregos, nem no livro de Jó, havia sequer um pálido esboço dos seus infortúnios.

Vejamos alguns traços patéticos da existência do nosso herói.

Nascera rico, filho de um proprietário de Goiás, que nunca vira outra terra além da província natal. Em 1828 estivera ali um naturalista francês, com quem o comendador Seabra travou relações, e de quem se fez tão amigo, que não quis outro padrinho para o seu único filho, que então contava um ano de idade. O naturalista, muito antes de o ser, cometera umas venialidades poéticas que mereceram alguns elogios em 1810, mas que o tempo, - velho trapeiro da eternidade, - levou consigo para o infinito depósito das coisas inúteis. Tudo lhe perdoava o ex-poeta, menos o esquecimento de um poema em que ele metrificara a vida de Fúrio Camilo, poema que ainda então lia com sincero entusiasmo. Como lembrança desta obra da juventude, chamou ele ao afilhado Camilo, e com esse nome o batizou o padre Maciel, a grande aprazimento da família e seus amigos.

– Compadre, disse o comendador ao naturalista, se este pequeno vingar, hei de mandá-lo para sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra coisa em que se faça homem. No caso de lhe achar jeito para andar com plantas e minerais, como o senhor, não se acanhe; dê-lhe o destino que lhe parecer como se fôra seu pai, que o é, espiritualmente falando.

– Quem sabe se eu viverei nesse tempo? disse o naturalista.

– Oh! Há de viver! Protestou Seabra. Esse corpo não engana; a sua têmpera é de ferro. Não o vejo eu andar todos os dias por esse matos e campos, indiferente a sóis e a chuvas, sem nunca ter a mais leve dor de cabeça? Com metade dos seus trabalhos já eu estava defunto. Há de viver e cuidar do meu rapaz, apenas ele tiver concluído cá os seus primeiros estudos.

A promessa de Seabra foi pontualmente cumprida. Camilo seguiu para Paris, logo depois de alguns preparatórios, e ali o padrinho cuidou dele como se realmente fôra seu pai. O comendador não poupava dinheiro para que nada faltasse ao filho; a mesada que lhe mandava podia servir para duas ou três pessoas em iguais circunstâncias. Além da mesada, recebia ele por ocasião da Páscoa e do Natal, amêndoas e festas que a mãe lhe mandava, e que lhe chegavam às mãos debaixo da forma de alguns excelentes mil francos.

Até aqui o único ponto negro na existência de Camilo, era o padrinho, que o trazia peado, com receio de que o rapaz viesse a perder-se nos precipícios da grande cidade. Quis, porém, a sai boa estrela que o ex-poeta de 1810 fosse repousar no nada ao lado das suas produções extintas, deixando na ciência alguns vestígios da sua passagem por ela. Camilo apressou-se ao escrever ao pai uma carta cheia de reflexões filosóficas.

O período final dizia assim:

(continua...)

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