Por Machado de Assis (1875)
Esta idéia veio fazer da noite de Alfredo uma noite de angústias. No dia seguinte trabalhou mal. Jantou às pressas e foi para casa. Ângela estava à janela. Quando Alfredo apareceu à sua e a cumprimentou, viu que ela tinha outra flor na mão; era um malmequer.
Alfredo ficou logo embebido a contemplá-la; Ângela começou a desfolhar o malmequer, como se estivesse consultando sobre algum problema do coração.
O namorado não se deteve mais; correu a uma gavetinha de segredo, tirou o laço de fita azul, e veio para a janela com ele.
A moça tinha desfolhado toda a flor; olhou para ele e viu o lacinho que lhe caíra da cabeça.
Estremeceu e sorriu.
Daqui em diante compreende o leitor que as coisas não podiam deixar de caminhar. Alfredo conseguiu vê-la um dia no jardim, assentada dentro de um caramanchão, e já desta vez o cumprimento foi acompanhado de um sorriso. No dia seguinte ela já não estava no caramanchão; passeava. Novo sorriso e três ou quatro olhares. Alfredo arriscou a primeira carta.
A carta era escrita com fogo; falava de um céu, de um anjo, de uma vida toda poesia e amor. O moço oferecia-se para morrer a seus pés se fosse preciso.
A resposta veio com prontidão.
Era menos ardente; direi até que não havia ardor nenhum; mas simpatia sim, e muita simpatia, entremeada de algumas dúvidas e receios, e frases bem dispostas para espertar os brios de um coração que todo se desfazia em sentimento. Travou-se então um duelo epistolar que durou cerca de um mês antes da entrevista. A entrevista verificou-se ao pé da cerca, de noite, pouco depois das ave-marias, tendo Alfredo mandado o criado ao seu amigo e confidente Tibúrcio com uma carta em que lhe pedia que detivesse o portador até às oito horas ou mais.
Convém dizer que esta entrevista era perfeitamente desnecessária.
Ângela era livre; podia escolher livremente um segundo marido; não tinha de quem esconder os seus amores.
Por outro lado, não era difícil a Alfredo obter uma apresentação em casa da viúva, se lhe conviesse entrar primeiramente assim, antes de lhe pedir a mão.
Todavia, o namorado insistiu na entrevista do jardim, que ela recusou a princípio. A entrevista entrava no sistema poético de Alfredo, era uma leve reminiscência da cena de Shakespeare.
VI
— Juras então que me amas?
— Juro.
— Até à morte?
— Até à morte.
— Também eu te amo, minha querida Ângela, não de hoje, mas há muito, apesar dos teus desprezos...
— Oh!
— Não direi desprezos, mas indiferença... Oh! mas tudo lá vai; agora somos dois corações ligados para sempre.
— Para sempre!
Neste ponto ouviu-se um rumor na casa de Ângela.
— Que é? perguntou Alfredo.
Ângela quis fugir.
— Não fujas!
— Mas...
— Não é nada; algum criado...
— Se dessem por mim aqui!
— Tens medo?
— Vergonha.
A noite encobriu a mortal palidez do namorado.
— Vergonha de amar! exclamou ele.
— Quem te diz isso? Vergonha de me acharem aqui, expondo-me às calúnias, quando nada impede que tu...
Alfredo reconheceu a justiça.
Nem por isso deixou de meter a mão nos cabelos com um gesto de aflição trágica, que a noite continuava a encobrir aos olhos da formosa viúva.
— Olha! o melhor é vires à nossa casa. Autorizo-te a pedir a minha mão. Conquanto ela já houvesse indicado isto nas cartas, era a primeira vez que formalmente o dizia. Alfredo viu-se transportado ao sétimo céu. Agradeceu a autorização que lhe dava e respeitosamente beijou-lhe a mão.
— Agora, adeus!
— Ainda não! exclamou Alfredo.
— Que imprudência!
— Um instante mais!
— Ouves? disse ela prestando o ouvido ao rumor que se fazia na casa. Alfredo respondeu apaixonada e literariamente:
— Não é a calhandra, é o rouxinol!
— É a voz de minha tia! observou a viúva prosaicamente. Adeus...
— Uma última coisa te peço antes de ir à tua casa.
— Que é?
— Outra entrevista neste mesmo lugar.
— Alfredo!
— Outra e última.
Ângela não respondeu.
— Sim?
— Não sei, adeus!
E libertando a sua mão das mãos do namorado que a retinha com força, Ângela correu para casa.
Alfredo ficou triste e alegre ao mesmo tempo.
Ouvira a doce voz de Ângela, tivera nas suas a sua mão alva e macia como veludo, ouvira jurar que o amava, enfim estava autorizado a pedir-lhe solenemente a mão. A preocupação porém da moça a respeito do que pensaria a tia afigurou-se-lhe extremamente prosaica. Quisera vê-la toda poética, embebida no seu amor, esquecida do resto do mundo, morta para tudo o que não fosse o bater do seu coração. A despedida sobretudo pareceu-lhe repentinamente demais. O adeus foi antes de medo que de amor, não se despediu, fugiu. Ao mesmo tempo esse sobressalto era dramático e interessante; mas por que não conceder-lhe segunda entrevista?
(continua...)
Caroline Alves em 16/10/2025