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#Romances#Literatura Brasileira

A Mão e a Luva

Por Machado de Assis (1874)

— Vieste lavar a alma da poeira do caminho, disse Estêvão que, ainda falando em prosa, cultivava as suas metáforas poéticas. Fizeste bem; não te perdoaria se preferisses a outra, a lambisgóia, que aqui nos querem impingir por grande coisa, e que não chega aos calcanhares do buço...

Interrompeu-se. Luís Alves acabava de cumprimentar cerimoniosamente alguém que passava; Estêvão volveu a cabeça para ver quem era. Era uma moça, que ele não chegou a ver, porque já descia as escadas; mas tão elegante e gentil que os olhos lhe fuzilaram de admiração.

— Algum namoro? perguntou ao amigo.

— Não; uma vizinha.

A desfilada acabou; saíram os dois e foram dali cear a um hotel, seguindo depois para Botafogo, onde morava Luís Alves, desde que perdera a mãe, alguns meses antes.

A casa de Luís Alves ficava quase no fim da Praia de Botafogo, tendo ao lado direito outra casa, muito maior e de aparência rica. A noite estava bela, como as mais belas noites daquele arrabalde. Havia luar, céu límpido, infinidade de estrelas e a vaga a bater molemente na praia, todo o material, em suma, de uma boa composição poética, em vinte estrofes pelo menos, obrigada a rima rica, com alguns esdrúxulos rebuscados nos dicionários.

Estêvão poetou, mas poetou em prosa, com um entusiasmo legitimo e sincero. Luís Alves, menos propenso às coisas belas, preferia a mais útil de todas naquela ocasião, que era ir dormir. Não o conseguiu sem ouvir ao hóspede tudo quanto ele pensava acerca daquele "pinto, que era das almas", aqueles olhos azuis, "profundos como o céu", exclamava Estêvão.

Afinal dormiram ambos; mas, ou fosse porque os tais olhos o perseguissem, ainda em sonhos, ou porque estranhasse a carna, ou porque o destino assim o resolvera, a verdade é que Estêvão dormiu pouco, e, coisa rara, acordou logo depois de aparecer a arraiada.

A manhã estava fresca e serena; era tudo silêncio, mal quebrado pelo bater do mar e pelo chilrear dos passarinhos nas chácaras da vizinhança. Estêvão, amuado por não poder conciliar o sono, resolvera-se a ir ver a manhã, de mais perto. Ergueu-se de manso, lavou-se, vestiu-se, e pediu que lhe levassem café ao jardim, para onde foi sobraçando um livro que acaso topou ao pé da cama.

O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chácara vizinha por uma cerca. Relanceando os olhos pela chácara, viu Estêvão que era plantada com esmero e arte, assaz vasta, recortada por muitas ruas curvas e duas grandes ruas retas. Uma destas começava das escadas de pedra da casa e ia até o fim da chácara; a outra ia da cerca de Luís Alves até à extremidade oposta, cortando a primeira no centro. Do lugar em que ficava Estêvão só a segunda rua podia ser vista de ponta a ponta.

Sentou-se o bacharel em um banco que ali achou, recebeu a xícara de café, que o escravo lhe trouxe daí a pouco, acendeu um charuto e abriu o livro. O livro era uma Prática forense. Demos-lhe razão ao despeito com o que o fechou e atirou ao chão, contentando-se com o canto dos pássaros e o cheiro das flores, e a sua imaginação também, que valia as flores e os pássaros.

Deus sabe até onde iria ela, com as asas fáceis que tinha, se um incidente lhas não colhera e fizera descer à terra. Da casa vizinha saíra um roupão, — ele não viu mais que um roupão, — e seguira pela rua que enfrentava com a casa, a passo lento e meditativo. Estêvão, que adorava todos os roupões, fossem ou não meditativos, deu as graças à Providência, pela boa fortuna que lhe deparava, e afiou os olhos para contemplar aquela graciosa madrugadora. Graciosa, ainda ele não sabia se o era; mas assentou que devia de ser, justamente porque desejava que o fosse.

A deliciosa paisagem ia ter enfim uma alma; o elemento humano vinha coroar a natureza.

Ergueu-se Estêvão, de toda a sua estatura elevada e gentil, para ver melhor, — e ser visto, digamos a verdade toda, — aquela desconhecida vizinha, que devia ser por força a que Luís Alves cumprimentara no teatro, Acteon cristão e modesto, não surpreendia Diana no banho, mas ao sair dele; todavia, não palpitava menos de comoção e curiosidade.

O roupão ia andando.

CAPÍTULO III

AO PÉ DA CERCA

A primeira coisa que Estêvão pôde descobrir é que a vizinha era moça. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de escultura antiga. Via-lhe a face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, não penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as mulheres belas. O roupão, — de musselina branca, — finamente bordado, não deixava ver toda a graça do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegância que nasce com a criatura ou se apura com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco à tesoura da costureira. Todo o colo ia coberto até o pescoço, onde o roupão era preso por um pequeno broche de safira. Um botão, do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em folhos de renda.

(continua...)

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