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#Contos#Literatura Brasileira

Antes que Cases

Por Machado de Assis (1875)

— Não, não é possível tamanha felicidade. O grito que soltou foi de sincera surpresa. A fita foi casual. Nem por isso a adorarei menos...

Apenas chegou à casa, Alfredo tirou o laço, que era de fita azul, e devia ter estado no colo ou no cabelo da viúva. Alfredo beijou-o cerca de vinte e cinco vezes e, se a natureza o tivesse feito poeta, é provável que naquela mesma ocasião expectorasse dez ou doze estrofes em que diria estar naquela fita um pedaço da alma da bela; a cor da fita serviria para fazer bonitas e adequadas comparações com o céu.

Não era poeta o nosso Alfredo; contentou-se em beijar o precioso despojo, e não deixou de referir o episódio ao seu confidente.

— Na minha opinião, disse este, é chegada a ocasião de lançar a carta. — Creio que sim.

— Não sejas mole.

— Há de ser já amanhã.

Alfredo não contava com a instabilidade das coisas humanas. A amizade na terra, ainda quando o coração a mantenha, está dependente do fio da vida. O cocheiro do tílburi não se teria provavelmente esquecido do seu freguês de uma noite; mas tinha morrido no intervalo daquela noite ao dia em que Alfredo o foi procurar.

— É demais! exclamou Alfredo; parece que a sorte se compraz de multiplicar os obstáculos com que eu esbarro a cada passo! Aposto que esse homem não morria se eu não precisasse dele. O destino persegue-me... Mas nem por isso hei de curvar a cabeça... Oh! não!

Com esta boa resolução se foi o namorado em busca de outro meio. A sorte trouxe-lhe um excelente. Vagou a casa contígua à de Ângela; era uma casa pequena, elegantezinha, própria para um ou dois rapazes solteiros... Alfredo alugou a casa e foi dizê-lo triunfalmente ao seu amigo.

— Fizeste muito bem! exclamou este; o golpe é de mestre. Estando ao pé é impossível que não chegues a algum resultado.

— Tanto mais que ela já me conhece, disse Alfredo; deve ver nisso uma prova de amor. — Justamente!

Alfredo não se demorou em fazer a mudança; dali a dois dias estava na sua casa nova. É escusado dizer que o laço azul não foi em alguma gaveta ou caixinha; foi na algibeira dele.

V

Tanto a casa de Ângela como a de Alfredo tinham um jardim no fundo. Alfredo quase morreu de contentamento quando descobriu esta circunstância.

— É impossível, pensava ele, que aquela moça tão poética, não goste de passear no jardim. Vê-la-ei desta janela do fundo, ou por cima da cerca se for baixa. Será? Alfredo desceu à cerca e verificou que a cerca lhe dava pelo peito.

— Bom! disse ele. Nem de propósito!

Agradeceu mentalmente à sorte que ainda há poucos dias amaldiçoava e subiu para pôr os seus objetos em ordem e dar alguns esclarecimentos ao criado.

Nesse mesmo dia de tarde, estando à janela, viu a moça. Ângela encarou com ele como quem duvidava do que via; mas passado esse momento de exame, pareceu não lhe dar atenção.

Alfredo, cuja intenção era cumprimentá-la, com o pretexto da vizinhança, esqueceu-se completamente da formalidade. Em vão procurou nova ocasião. A moça parecia alheia à sua pessoa.

— Não faz mal, disse ele consigo; o essencial é que eu esteja aqui ao pé. A moça parecia-lhe agora ainda mais bonita. Era uma beleza que ainda ganhava mais quando examinada de perto. Alfredo reconheceu que era de todo impossível pensar em outra mulher deste mundo ainda que aquela devesse fazê-lo desgraçado. No segundo dia foi mais feliz. Chegou à janela repentinamente na ocasião em que ela e a tia estavam à sua; Alfredo cumprimentou-as respeitosamente. Elas corresponderam com um leve gesto.

O conhecimento estava travado.

Nem por isso adiantou o namoro, porque durante a tarde os olhos de ambos não se encontraram e a existência de Alfredo parecia ser a última coisa de que Ângela se lembrava.

Oito dias depois, estando Alfredo à janela, viu chegar a moça sozinha, com uma flor na mão. Ela olhou para ele; cumprimentaram.

Era a primeira vez que Alfredo alcançava alguma coisa. A sua alma voou ao sétimo céu.

A moça recostou-se na grade com a flor na mão, a brincar distraída, não sei se por brincar, se por mostrar a mão ao vizinho. O certo é que Alfredo não tirava os olhos da mão. A mão era digna irmã do pé, que Alfredo entrevira na Rua da Quitanda. O rapaz estava fascinado.

Mas quando ele quase perdeu o juízo foi na ocasião em que ela, indo retirar-se da janela, encarou outra vez com ele. Não havia severidade nos lábios; Alfredo viu-lhe até uma sombra de sorriso.

— Sou feliz! exclamou Alfredo entrando. Enfim, consegui já alguma coisa. Dizendo isto deu alguns passos na sala, agitado, rindo, mirando-se ao espelho, completamente fora de si. Dez minutos depois chegou à janela; outros dez minutos depois chegava Ângela.

Olharam-se ainda uma vez.

Era a terceira naquela tarde, depois de tantas semanas da mais profunda indiferença. A imaginação de Alfredo não o deixou dormir nessa noite. Pelos seus cálculos dentro de dois meses iria pedir-lhe a mão.

No dia seguinte não a viu e ficou desesperado com esta circunstância. Felizmente o criado, que já havia percebido alguma coisa, achou meio de lhe dizer que a família da casa vizinha saíra de manhã e não voltara.

Seria uma mudança?

(continua...)

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