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#Contos#Literatura Brasileira

Antes que Cases

Por Machado de Assis (1875)

Foi neste ponto que interveio o personagem que o leitor pode chamar Dom Acaso ou madre Providência, como lhe aprouver. Nada mais fortuito que ir por uma rua em vez de ir por outra, sem nenhuma necessidade que obrigue a seguir por esta ou por aquela. Pois este ato assim fortuito é o ponto de partida da aventura de Alfredo Tavares. Havia em frente de uma loja, que ficava adiante do extinto Correio Mercantil, um carro parado. Esta circunstância não chamou a atenção de Alfredo; ele ia cheio de seu próprio aborrecimento, de todo alheio ao mundo exterior. Mas uma mulher não é um carro, e a coisa de seis passos da loja, Alfredo via assomar à porta uma mulher, vestida de preto, e esperar que um criado lhe abrisse a portinhola.

Alfredo parou.

A necessidade de esperar que a senhora entrasse no carro, justificava este ato; mas a razão dele era pura e simplesmente a admiração, o pasmo, o êxtase em que ficou o nosso Alfredo ao contemplar, de perfil e à meia luz, um rosto idealmente belo, uma figura elegantíssima, gravemente envolvida em singelas roupas pretas, que lhe realçavam mais a alvura dos braços e do rosto. Eu diria que o rapaz ficara embasbacado, se o permitisse a nobreza dos seus sentimentos e o asseio do escrito.

A moça desceu a calçada, pôs um pé quase invisível no estribo do carro e entrou; fechou se a portinhola, o criado subiu a almofada e o carro partiu. Alfredo só se moveu quando o carro começou a andar. A visão desaparecera, mas o rosto dela ficara-lhe na memória e no coração. O coração palpitava com força. Alfredo apressou o passo atrás do carro, mas muito antes de chegar à esquina da Rua da Assembléia, já o carro subia por esta acima. Quis a sua felicidade que um tílburi viesse atrás dele e vazio. Alfredo meteu-se no tílburi e mandou tocar atrás do carro.

A aventura sorria-lhe. O fortuito do encontro, a corrida de um veículo atrás de outro, ainda que não fossem coisas raras, davam-lhe sempre um ponto de partida para um romance. Sua imaginação estava já além deste primeiro capítulo. A moça devia ser uma Lélia perdida na realidade, uma Heloísa ignota da sociedade fluminense, de quem ele seria, salvo algumas alterações, o apaixonado Abelardo. Neste caminho de invenção Alfredo tinha já mentalmente escrito muitos capítulos do seu romance, quando o carro parou em frente de uma casa da Rua de Mata-cavalos, chamada hoje de Riachuelo. O tílburi parou a alguns passos.

Não tardou que a moça saísse do carro e entrasse na casa, cuja aparência indicava certa abastança. O carro voltou depois pelo mesmo caminho, a passo lento, enquanto o tílburi, também a passo lento seguia para diante. Alfredo tomou nota da casa, e de novo mergulhou-se nas suas reflexões.

O cocheiro do tílburi que até então guardara um inexplicável silêncio, entendeu que devia oferecer os seus bons ofícios ao freguês.

— V. S. ficou entusiasmado por aquela moça, disse ele com ar sonso. É bem bonita! — Parece que sim, respondeu Alfredo; vi-a de relance. Morará ali mesmo? — Mora.

— Ah! o senhor já ali foi...

— Duas vezes.

— Foi naturalmente levar o marido.

— É viúva.

— Sabe disso?

— Sei, sim, senhor... Onde pus eu o meu charuto?...

— Tome um.

Alfredo ofereceu um charuto de Havana ao cocheiro, que o aceitou com muitos sinais de reconhecimento. Aceso o charuto, o cocheiro continuou.

— Aquela moça é viúva e luxa muito. Muito homem anda aí mordido por ela, mas parece que ela não quer casar.

— Como sabe disso?

— Eu moro ali na Rua do Resende. Não viu como o cavalo queria quebrar a esquina? Alfredo esteve um instante calado.

— Mora só? perguntou ele.

— Mora com uma tia velha e uma irmã mais moça.

— Sozinhas?

— Há também um primo.

— Moço?

— Trinta e tantos anos.

— Solteiro?

— Viúvo.

Alfredo confessou a si mesmo que este primo era carta desnecessária no baralho. Palpitou-lhe que seria um obstáculo às suas venturas. Se fosse um pretendente? Era natural, se não estava morto para as paixões da terra. Uma prima tão bonita é uma Eva tentada e tentadora. Alfredo fantasiava já assim um inimigo e as forças dele, antes de conhecer a disposição da praça.

O cocheiro deu-lhe algumas informações mais. Havia umas partidas na casa da formosa dama, mas só de mês a mês, as quais eram freqüentadas por algumas poucas pessoas escolhidas. Ângela, que assim dizia ele chamar-se a moça, tinha alguns haveres, e viria a herdar da tia, que já estava muito velha.

Alfredo recolheu carinhosamente as informações todas do cocheiro, e o nome de Ângela para logo lhe ficou entranhado no coração. Inquiriu do número do tílburi, o lugar onde estacionava e o número da cocheira na Rua do Resende, e mandou voltar para baixo. Ao passar em frente à casa de Ângela, Alfredo deitou para lá os olhos. A sala estava alumiada, mas nenhum vulto de mulher ou de homem lhe apareceu. Alfredo recostou-se molemente e o tílburi partiu a todo o galope.

III

Alfredo estava contente consigo e com a fortuna. Depara-lhe esta uma mulher como aquela senhora, teve ele a idéia de a seguir, as circunstâncias o ajudaram poderosamente; sabia agora onde morava a bela, sabia que era livre, e enfim, e mais que tudo, amava.

(continua...)

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