Por Machado de Assis (1887)
Para torná-la mais completa e necessária à casa, D. Joana não adoecia nunca; não padecia de nervos, nem de enxaqueca, nem de coisa nenhuma; era uma mulher de ferro. Acordava com a aurora e punha logo os escravos a pé; inspecionava tudo, ordenava tudo, dirigia tudo. João Barbosa não tinha outro cuidado mais que viver. Os dois sobrinhos tentaram alguma vez separar da casa uma mulher que eles temiam pela influência que já tinha e pelo desenlace possível de semelhante situação. Iam levar os boatos da rua aos ouvidos do tio.
— Dizem isso? perguntava este.
— Sim, senhor, dizem isso, e não parece bonito, na sua idade, estar exposto a... — A coisa nenhuma, interrompia.
— Nenhuma!
— Ou a pouca coisa. Dizem que eu nutro certa ordem de afetos por aquela santa mulher! Não é verdade, mas não seria impossível, e sobretudo não era feio.
Esta era a resposta de João Barbosa. Um dos sobrinhos, vendo que nada alcançava, resolvera desligar seus interesses dos do outro, e adotou o plano de aprovar o procedimento do velho, louvando-lhe as virtudes de D. Joana e rodeando-a de seu respeito, que a princípio arrastou a própria caseira. O plano teve algum efeito, porque João Barbosa francamente lhe declarou que ele não era tão ingrato como o outro. — Ingrato, eu? seria um monstro, respondeu o sobrinho José com um gesto de indignação mal contida.
Tal era a situação respectiva entre João Barbosa e D. Joana, quando na referida noite de setembro entrou aquele em casa, com cara de quem tinha visto passarinho verde. D. Joana tinha dito, por brinco:
— Querem ver que é...
Ao que ele respondeu:
— Isso mesmo.
— Isso mesmo, quê? repetiu D. Joana daí a alguns minutos.
— Isso que a senhora pensou.
— Mas eu não pensei nada
— Pois fez mal, D. Joana.
— Mas então...
— D. Joana, dê suas ordens para o chá
D. Joana obedeceu um pouco magoada. Era a primeira vez que João Barbosa lhe negava uma confidência. Ao mesmo tempo que isso a magoava, fazia-a suspeitosa; tratava-se talvez de alguma que viria prejudicá-la.
Servindo o chá, depois que João Barbosa se despira, apressou-se a caseira, na forma de costume, a encher-lhe a xícara, a escolher-lhe as fatias mais tenras, a abrir-lhe o guardanapo, com a mesma solicitude de dez anos. Haveria porém uma sombra de acanhamento entre ambos, e a palestra foi menos seguida e menos alegre que nas outras noites.
Durante os primeiros dias de outubro, João Barbosa trazia o mesmo ar singular, que tanto impressionara a caseira. Ele ria a miúdo, ria para si, ia duas vezes à rua, acordava mais cedo, falava de várias alterações em casa. D. Joana começara a suspeitar a causa verdadeira daquela mudança. Gelou-se-lhe o sangue e o terror se apoderou de seu espírito. Duas vezes procurou encaminhar a conversa ao ponto essencial, mas João Barbosa andava tão fora de si que não ouvia sequer o que ela dizia. Ao cabo de quinze dias, concluído o almoço, João Barbosa disse-lhe que a acompanhasse ao gabinete. — É agora! pensou ela; vou saber de que se trata.
Passou ao gabinete.
Ali chegando, sentou-se João Barbosa e disse a D. Joana que fizesse o mesmo. Era conveniente; as pernas da boa mulher tremiam como varas.
— Vou dar-lhe a maior prova de estima, disse o septuagenário.
D. Joana curvou-se.
— Está aqui em casa há dez anos...
— Que me parecem dez meses.
— Obrigado, D. Joana! Há dez anos que eu tive a boa idéia de procurar uma pessoa que me tratasse da casa, e a boa fortuna de encontrar na senhora a mais consumada... — Falemos de outra coisa!
— Sou justo; devo ser justo.
— Adiante.
— Louvo-lhe a modéstia; é o belo realce de suas nobres virtudes.
— Vou-me embora.
— Não, não vá; ouça o resto. Está contente comigo?
— Se estou contente! Onde poderia achar-me melhor? O senhor tem sido para mim um pai...
— Um pai?... interrompeu João Barbosa fazendo uma careta; falemos de outra coisa. Saiba D. Joana que não a quero mais deixar.
— Quem pensa nisso?
— Ninguém; mas eu devia dizê-lo. Não a quero deixar, estará a senhora disposta a fazer o mesmo?
D. Joana teve uma vertigem, um sonho, um relance do Paraíso; ela viu ao longe um padre, um altar, dois noivos, uma escritura, um testamento, uma infinidade de coisas agradáveis e quase sublimes.
— Se estou disposta! exclamou ela. Quem se lembraria de dizer o contrário? Estou disposta a acabar aqui os meus dias; mas devo dizer que a idéia de uma aliança... sim... este casamento...
— O casamento há de fazer-se! interrompeu João Barbosa batendo uma palmada no joelho. Parece-lhe mau?
— Oh! não... mas, seus sobrinhos...
— Meus sobrinhos são dois capadócios, de quem não faço caso.
D. Joana não contestou essa opinião de João Barbosa, e este, serenado o ânimo, readquiriu o sorriso de bem-aventurança que, durante as duas últimas semanas, o distinguia do resto dos mortais. D. Joana não se atrevia a olhar para ele e brincava com as pontas do mantelete que trazia. Correram assim dois ou três minutos. — Pois é o que lhe digo, continuou João Barbosa, o casamento há de fazer-se. Sou maior, não devo satisfação a ninguém.
— Lá isso é verdade.
— Mas, ainda que as devesse, poderia eu hesitar à vista... oh! à vista da incomparável
graça daquela... vá lá.. de D. Lucinda?
(continua...)
ASSIS, Machado de. A melhor das noivas. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1877.