Por Machado de Assis (1884)
Francisco. Talvez não fizesse nada, se não fosse a circunstância já dita de vê-la rezar a todos os altares. Imaginou logo, não devoção nem promessa, mas uma alma desesperada e solitária. A situação moral, se tal era, parecia-se com a dele; não foi preciso mais para que se inclinasse à moça, e a acompanhasse até Catumbi. A visão tornou com ele, sentou-se à escrivaninha, aninhou-se entre o deve e o há de haver, como uma rosa caída em moita de ervas bravias. Não é minha esta comparação; é do próprio Caldas, que nessa mesma noite tentou um soneto. A inspiração não acudiu ao chamado, mas a imagem da moça de Catumbi dormiu com ele e acordou com ele. Daí em diante, o pobre Caldas freqüentou o bairro. Ia e vinha, passava muitas vezes, espreitava a hora em que pudesse ver Joaninha, às tardes. Joaninha aparecia à janela; mas, além de não ser já tão assídua como antes, era voluntariamente alheia à menor sombra de homem. Não fitava nenhum; não dava sequer um desses olhares que não custam nada e não deixam nada. Fizera-se uma espécie de freira leiga. — Creio que ela hoje me viu, pensava consigo o guarda-livros, uma tarde, em que ele, como de uso, passara por baixo das janelas, levantando muito a cabeça. A verdade é que ela tinha os olhos na erva que crescia à beira da calçada, e o Caldas, que ia passando, naturalmente entrou no campo da visão da moça; mas tão depressa ela o viu, levantou os olhos e estendeu-os à chaminé da casa fronteira. Caldas, porém, edificou sobre essa probabilidade um mundo de esperanças. Casariam talvez naquele mesmo ano. Não, ainda não; faltavam-lhe meios. Um ano depois. Até lá dar-lhe-iam interesse na casa. A casa era boa e próspera. Vieram cálculos de lucro. A contabilidade deu o braço à imaginação, e disseram muitas coisas bonitas uma à outra; algarismos e suspiros trabalharam em comum, tais como se fossem do mesmo oficio. Mas o olhar não se repetiu naqueles dias próximos, e o desespero entrou na alma do guarda-livros.
A situação moral deste agravou-se. Os versos entraram a cair entre as contas, e os dinheiros entrados nos livros da casa mais pareciam sonetos que dinheiro. Não é que o guarda-livros os escriturasse em verso; mas alternava as inspirações com os lançamentos, e o patrão, um dia, foi achar entre duas páginas de um livro um soneto imitado de Bocage. O patrão não conhecia esse poeta nem outro, mas conhecia versos e sabia muito bem que não havia entre os seus devedores nenhum Lírio do céu, lírio caído em terra.
Perdoou o caso, mas entrou a observar o empregado. Este, por sua desgraça, ia de mal a pior. Um dia, quando menos esperava, disse-lhe o patrão que procurasse outra casa. Não lhe deu razões; o pobre-diabo, aliás tímido, tinha certo orgulho que lhe não permitiu ficar mais tempo e saiu logo.
Não há mau poeta, nem guarda-livros relaxado que não possa amar deveras; nem ruins versos tiraram jamais a sinceridade de um sentimento ou o fizeram menos forte. A paixão deste pobre moço desculpará os seus desazos comerciais e poéticos. Ela o levou por descaminhos inesperados; fê-lo passar crises tristíssimas. Tarde achou um mau emprego. A necessidade fê-lo menos assíduo em Catumbi. Os empréstimos eram poucos e escassos; por muito que ele cortasse a comida (morava com um amigo, por favor), não lhe davam sempre para os colarinhos imaculados, nem as calças são eternas. Mas essas ausências longas não tiveram o condão de abafar ou atenuar um sentimento que, por outro lado, não era alimentado pela moça; novo emprego melhorou um tanto a situação do namorado. Voltou a ir lá mais vezes. Era fim do verão, as tardes tendiam a diminuir, e pouco tempo lhe restaria delas para dar um pulo a Catumbi. Com o inverno cessaram os passeios; Caldas desforrava-se aos domingos.
Não me pergunteis se tentou escrever a Joaninha; tentou, mas as cartas ficavam-lhe na algibeira; eram depois reduzidas a verso, para suprir as lacunas da inspiração. Recorreu aos bilhetes misteriosos, nos jornais, com alusões à moça de Catumbi, marcando dia e hora em que ela o veria passar. Joaninha parece que não lia jornais, ou não dava com os bilhetes. Um dia, por acaso, sucedeu achá-la à janela. Sucedeu também que ela sustentasse o olhar dele. Eram velhos costumes, jeitos de outro tempo, que os olhos não haviam perdido; a verdade é que ela não o viu. A ilusão, porém, foi imensa, e o pobre Caldas achou naquele movimento inconsciente da moça uma adesão, um convite, um perdão, quando menos, e do perdão à cumplicidade bem podia não ir mais que um passo. Assim correram dias e dias, semanas e semanas. No fim do ano, Caldas achou a porta fechada. Cuidou que ela se houvesse mudado e indagou pela vizinhança. Soube que não; uma pessoa de amizade ou ainda parenta, levara a família para um sítio no interior. — Por muito tempo?
— Foram passar o verão.
Caldas esperou que o verão acabasse. O verão não andou mais depressa que de costume; quando começou o outono, Caldas foi um dia ao bairro e achou a porta aberta. Não viu a moça, e achou esquisito que não regressava de lá, como antes, comido de desespero. Pôde ir ao teatro, pôde ir cear. Entrando em casa, recapitulou os longos meses de paixão não correspondida, pensou nas fomes passadas para poder atar uma gravata nova, chegou a recordar alguma coisa parecida com lágrimas. Foram porventura os seus melhores versos. Vexou-se desses, como já se vexara dos outros. Quis voltar a Catumbi, no domingo próximo, mas a história não guardou a causa que impediu esse projeto. Só guardou que ele tornou a ir ao teatro e a cear.
Um mês depois, como passasse pela Rua da Quitanda, viu paradas duas senhoras, diante de uma loja de fazendas. Era a inglesinha Barcelos e a mãe. Caldas chegou a parar um pouco adiante; não sentiu o alvoroço antigo, mas gostou de vê-la. Joaninha e a mãe entraram na loja; ele passou pela porta, olhou sem parar e foi adiante. Tinha de estar na praça às duas horas e faltavam cinco minutos. Joaninha não suspeitou sequer que ali passara o único homem a quem não correspondeu, e o único que verdadeiramente a amou.
ASSIS, Machado de. A Inglesinha Barcelos. A Estação, Rio de Janeiro, maio 1894.