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#Crônicas#Literatura Brasileira

Crônica do Viver Baiano Seiscentista

Por Gregório de Matos (1650)

A Crônica do Viver Baiano Seiscentista reúne textos atribuídos a Gregório de Matos que revelam, com sátira e crítica mordaz, o cotidiano da Bahia colonial. A obra expõe tensões sociais, políticas e religiosas do período, retratando com ironia figuras públicas e práticas locais, e oferecendo um olhar incisivo sobre a vida urbana e seus contrastes no século XVII.

A NOSSA SÉ DA BAHIA


com ser um mapa de festas

é um presépio de bestas.

E se nisto maldigo ou me engano, eu me submeto à Santa Madre Igreja.

Se virdes um Dom Abade sobre o púlpito cioso,

não Ihe chameis Religioso

chamai-lhe embora de Frade Jesus, nome de Jesus!


AOS CAPITULARES DO SEU TEMPO.


A nossa Sé da Bahia, com ser um mapa de festas, é um presépio de bestas, se não for estrebaria:

várias bestas cada dia

vemos, que o sino congrega,

Caveira mula galega, o Deão burrinha parda,

Pereira besta de albarda, tudo para a Sé se agrega.


PONDERA ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO QUAM GLORIOSA HE A PAZ DA RELIGIÃO.


Quem da religiosa vida não se namora, e agrada, já tem a alma danada,

e a graça de Deus perdida:

uma vida tão medida

pela vontade dos Céus,

que humildes ganham troféus, e tal glória se desfruta,

que na mesa a Deus se escuta, no Coro se louva a Deus.

Esta vida religiosa tão sossegada, e segura a toda a boa alma apura, afugenta a alma viciosa: há cousa mais deliciosa,

que achar o jantar, e almoço

sem cuidado, e sem sobrosso tendo no bom, e mau ano sempre o pão quotidiano, e escusar o Padre nosso!

Há cousa como escutar o silêncio, que a garrida toca depois da comida pare cozer o jantar! há cousa como calar,

e estar só na minha cela considerando a panela,

que cheirava, e recendia no gosto de malvasia

na grandeza da tigela!

Há cousa como estar vendo uma só Mãe religião

sustentar a tanto Irmão

mais, ou menos Reverendo! há maior gosto, ao que entendo, que agradar ao meu Prelado, para ser dele estimado,

se ao obedecer-lhe me animo, e depois de tanto mimo

ganhar o Céu de contado!

Dirão réprobos, e réus, que a sujeição é fastio,

pois para que é o alvedrio, senão para o dar a Deus:

quem mais o sujeita aos céus, esse mais livre se vê,

que Deus (como ensina a fé) nos deixou livre a vontade, e o mais é mor falsidade,

que os montes de Gelboé.

Oh quem, meu Jesus amante, do Frade mais descontente me fizera tão parente,

que fora eu seu semelhante! Quem me vira neste instante tão solteiro, qual eu era,

que na Ordem mas austera comera o vosso maná! Mas nunca direi, que lá

virá a fresca Primavera.


AO ILUSTRÍSSIMO SENHOR D. Fr. MANUEL DA RESSURREIÇÃO.


Subi a púrpura já, raio luzente

Do sol Americano, que em dourado Dossel o Tibre vos verá sagrado Dar um dia leis à sua corrente.

Entonces da Tiara a vossa frente, E vosso Patriarca coroado

Um redil deveremos, e um cajado Às vossas claves, e a seu zelo ardente.

Subi a cumes tão esclarecidos, ó vos, de cuja remendada capa

sombras são já purpúreos resplandores.

Em quem divinamente reunidos Os brasões de Seráfico, e de Papa

Verão os vossos dous Progenitores.


A MORTE DO MESMO SENHOR SUCEDIDA DE UMA FEBRE MALIGNA EM BELÉM ANDANDO EM VISITA.


Neste túmulo a cinzas reduzido

Da virtude o Herói mais portentoso Se oculta, feito estrago lastimoso Da dura Parca, de que foi vencido.

De um incêndio cruel ficou rendido

Aquele peito forte, e valoroso,

Que por Deus tantas vezes amoroso Tinha grandes incêndios padecido.

Porém a Parca andou muito advertida

Em Ihe tirar a vida desta sorte, E tirana não foi, sendo homicida.

Que se o matou em um incêndio forte,

Foi, porque se de incêndios teve a vida, De incêndios era bem tivesse a morte.


EPITÁFIO À SEPULTURA DO MESMO Ex.mo. SENHOR ARCEBISPO


Este mármore encerra, ó Peregrino,

Se bem, que a nossos olhos já guardado, Aquele, que na terra foi sagrado, Para que lá no céu fosse divino.

De seu merecimento justo, e digno

Prêmio, pois na terra nunca irado Se viu o seu poder, e o seu cajado Neste nosso hemisfério ultramarino.

Enfim relíquias de um Prelado santo Oculta este piedoso monumento:

As lágrimas detém, enxuga o pranto.

Prosta-te reverente, e beija atento

As cinzas, de quem deu ao mundo espanto, E a todos os Prelados documento.


A CHEGADA DO ILUSTRÍSSIMO SENHOR D. JOÃO FRANCO DE OLIVEIRA TENDO SIDO JÁ BISPO EM ANGOLA.


Hoje os Matos incultos da Bahia

Se não suave for, ruidosamente

Cantem a boa vinda do Eminente Príncipe desta Sacra Monarquia.

Hoje em Roma de Pedro se Ihe fia

Segunda vez a Barca, e o Tridente,

Porque a pesca, que fez já no Oriente, A destinou para a do meio-dia.

Oh se quisera Deus, que sendo ouvida A Musa bronca dos incultos Matos Ficasse a vossa púrpura atraída!

Oh se como Arion, que a doces tratos Uma pedra atraiu endurecida,

Atraísse eu, Senhor, vossos sapatos!


A FROTA EM QUE VEIO O PALLIOLO DESTE GRANDE PRELADO.


Tal frota nunca viram as idades

De rota, desmembrada, e detençosa,

Mui Santa deve ser, e religiosa, Pois de dous em dous veio, como frades.

Não Ihe duvido eu destas qualidades,

Se veio na Almirante venturosa Aquela insígnia Santa, e poderosa, Que à Mitra episcopal dá potestades.

Chegou o Pálio enfim, que de um Prelado,

Que nos veio a medida do desejo

Tão merecido foi, como esperado.

Eu ouço repicar, e folgar vejo:

Repica a Sé, o Carmo está folgado,

(continua...)

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