Crônica do Viver Baiano Seiscentista GREGóRIO DE MATOS (1650) A Crônica do Viver Baiano Seiscentista reúne textos atribuídos a Gregório de Matos que revelam, com sátira e crítica mordaz, o cotidiano da Bahia colonial. A obra expõe tensões sociais, políticas e religiosas do período, retratando com ironia figuras públicas e práticas locais, e oferecendo um olhar incisivo sobre a vida urbana e seus contrastes no século XVII. A NOSSA SÉ DA BAHIA com ser um mapa de festasé um presépio de bestas.E se nisto maldigo ou me engano, eu me submeto à Santa Madre Igreja.Se virdes um Dom Abade sobre o púlpito cioso,não Ihe chameis Religiosochamai-lhe embora de Frade Jesus, nome de Jesus! AOS CAPITULARES DO SEU TEMPO. A nossa Sé da Bahia, com ser um mapa de festas, é um presépio de bestas, se não for estrebaria:várias bestas cada diavemos, que o sino congrega,Caveira mula galega, o Deão burrinha parda,Pereira besta de albarda, tudo para a Sé se agrega. PONDERA ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO QUAM GLORIOSA HE A PAZ DA RELIGIÃO. Quem da religiosa vida não se namora, e agrada, já tem a alma danada,e a graça de Deus perdida:uma vida tão medidapela vontade dos Céus,que humildes ganham troféus, e tal glória se desfruta,que na mesa a Deus se escuta, no Coro se louva a Deus.Esta vida religiosa tão sossegada, e segura a toda a boa alma apura, afugenta a alma viciosa: há cousa mais deliciosa,que achar o jantar, e almoçosem cuidado, e sem sobrosso tendo no bom, e mau ano sempre o pão quotidiano, e escusar o Padre nosso!Há cousa como escutar o silêncio, que a garrida toca depois da comida pare cozer o jantar! há cousa como calar,e estar só na minha cela considerando a panela,que cheirava, e recendia no gosto de malvasiana grandeza da tigela!Há cousa como estar vendo uma só Mãe religiãosustentar a tanto Irmãomais, ou menos Reverendo! há maior gosto, ao que entendo, que agradar ao meu Prelado, para ser dele estimado,se ao obedecer-lhe me animo, e depois de tanto mimoganhar o Céu de contado!Dirão réprobos, e réus, que a sujeição é fastio,pois para que é o alvedrio, senão para o dar a Deus:quem mais o sujeita aos céus, esse mais livre se vê,que Deus (como ensina a fé) nos deixou livre a vontade, e o mais é mor falsidade,que os montes de Gelboé.Oh quem, meu Jesus amante, do Frade mais descontente me fizera tão parente,que fora eu seu semelhante! Quem me vira neste instante tão solteiro, qual eu era,que na Ordem mas austera comera o vosso maná! Mas nunca direi, que lávirá a fresca Primavera. AO ILUSTRÍSSIMO SENHOR D. Fr. MANUEL DA RESSURREIÇÃO. Subi a púrpura já, raio luzenteDo sol Americano, que em dourado Dossel o Tibre vos verá sagrado Dar um dia leis à sua corrente.Entonces da Tiara a vossa frente, E vosso Patriarca coroadoUm redil deveremos, e um cajado Às vossas claves, e a seu zelo ardente.Subi a cumes tão esclarecidos, ó vos, de cuja remendada capasombras são já purpúreos resplandores.Em quem divinamente reunidos Os brasões de Seráfico, e de PapaVerão os vossos dous Progenitores. A MORTE DO MESMO SENHOR SUCEDIDA DE UMA FEBRE MALIGNA EM BELÉM ANDANDO EM VISITA. Neste túmulo a cinzas reduzidoDa virtude o Herói mais portentoso Se oculta, feito estrago lastimoso Da dura Parca, de que foi vencido.De um incêndio cruel ficou rendidoAquele peito forte, e valoroso,Que por Deus tantas vezes amoroso Tinha grandes incêndios padecido.Porém a Parca andou muito advertidaEm Ihe tirar a vida desta sorte, E tirana não foi, sendo homicida.Que se o matou em um incêndio forte,Foi, porque se de incêndios teve a vida, De incêndios era bem tivesse a morte. EPITÁFIO À SEPULTURA DO MESMO Ex.mo. SENHOR ARCEBISPO Este mármore encerra, ó Peregrino,Se bem, que a nossos olhos já guardado, Aquele, que na terra foi sagrado, Para que lá no céu fosse divino.De seu merecimento justo, e dignoPrêmio, pois na terra nunca irado Se viu o seu poder, e o seu cajado Neste nosso hemisfério ultramarino.Enfim relíquias de um Prelado santo Oculta este piedoso monumento:As lágrimas detém, enxuga o pranto.Prosta-te reverente, e beija atentoAs cinzas, de quem deu ao mundo espanto, E a todos os Prelados documento. A CHEGADA DO ILUSTRÍSSIMO SENHOR D. JOÃO FRANCO DE OLIVEIRA TENDO SIDO JÁ BISPO EM ANGOLA. Hoje os Matos incultos da BahiaSe não suave for, ruidosamenteCantem a boa vinda do Eminente Príncipe desta Sacra Monarquia.Hoje em Roma de Pedro se Ihe fiaSegunda vez a Barca, e o Tridente,Porque a pesca, que fez já no Oriente, A destinou para a do meio-dia.Oh se quisera Deus, que sendo ouvida A Musa bronca dos incultos Matos Ficasse a vossa púrpura atraída!Oh se como Arion, que a doces tratos Uma pedra atraiu endurecida,Atraísse eu, Senhor, vossos sapatos! A FROTA EM QUE VEIO O PALLIOLO DESTE GRANDE PRELADO. Tal frota nunca viram as idadesDe rota, desmembrada, e detençosa,Mui Santa deve ser, e religiosa, Pois de dous em dous veio, como frades.Não Ihe duvido eu destas qualidades,Se veio na Almirante venturosa Aquela insígnia Santa, e poderosa, Que à Mitra episcopal dá potestades.Chegou o Pálio enfim, que de um Prelado,Que nos veio a medida do desejoTão merecido foi, como esperado.Eu ouço repicar, e folgar vejo:Repica a Sé, o Carmo está folgado,Louco devo eu de ser, pois não doidejo. AO MESMO ILUSTRÍSSIMO SENHOR CHEGANDO DE VISITA A VILA DE S. FRANCISCO, ONDE Ò ESPERAVAM MUITOS CLÉRIGOS PARA TOMAREM ORDENS. Bem-vindo seja, Senhor, Vossa IlustríssimaA este sítio famoso do Seráfico,Onde nesta canção de verso alcaicoOuça a ovelha balar sua amantíssimaAqui verá correr água claríssimaDo grande Sergipe rio antártico,Onde para tomar o eclesiástico Caráter Santo há gente prestantíssima.Aqui de Pedro a rede celebérrima Cuido, que fez os lanços hiperbólicos, Que na Bíblia se lêem Santa integérrima.Porque estes Pescadores tão católicos Nunca uma pesca fazem tão pulquérrima,Que os buchos nos não deixem melancólicos. A MAGNIFICÊNCIA COM QUE OS MORADORES DAQUELA VlLA RECEBERAM O DITO SENHOR COM VÁRIOS ARTIFÍCIOS DE FOGO POR MAR, E TERRA CONCORRENDO PARA A DESPESA O VIGÁRIO. Apareceram tão belas no mar canoas, e truzes,que se o céu é mar de luzes,o mar era um céu de estrelas: era uma armada sem velas movida de outro elemento,era um prodígio, um portento ver com tanto desafogo esta navegar com fogo,se outras arribam com vento.Sua Ilustríssima estava assustado sobre absorto, porque via um rio morto o fogo, em que se abrasava: grande cuidado Ihe dava ver, que o mar morria então infamado na opinião,e como um judeu queimado, sendo, que o mar é sagrado,que inda é mais que ser cristão.Lá no vale ardia o ar, e por ser, comua a guerra, no mar há fogo de terra, na terra há fogo do mar: toda a esfera a retumbar fazia correspondência,e com alegre aparêncialuzia na ardente empresa fogo do ar por alteza,e do mar por excelência.Em cima as rodas paravam, que varia a fortuna toda desandava a sua roda,e as do fogo não paravam: os mestres se envergonhavam, que era Lourenço, e Diogo:e eu vi, que a Lourenço logo a face se quebrantava,com que a mim mais me queimava o seu rosto, que o seu fogo.Deu-se fogo em conclusão a uma roda de encomenda, foi como a minha fazenda,que ardeu num abrir de mão: estava em meio do chãoum rasto, para que ardesse uma câmara, e parece, que uma faísca caiu,disparou: quem jamais viu,que o fogo em câmeras desse.Era grande a multidão do Clero, e dos Seculares,que a graça destes folgares consiste na confusão:Sua llustríssima então se foi, que o fogo não zomba, aqui queima, ali arromba: segue-lhe o vigário os trilhos,que as rodas não tinham filhos mas pariam muita bomba.A gente ficou pasmada, porque viu a gente toda,que era a resposta da roda de bombarda respostada:ficou a turba enganada,porque enfim nos perturbar-nos:mas todos nos alegramos,que isto somos, e isso fomos, que então alegres nos pomosquando mais nos enganamos.Entre o desar, e entre o risco a noite alegre passou: que mais noite! se a gabou té o Padre São Francisco:nas mais paróquias foi cisco, foi sombra, foi ar, foi nadado nosso Prelado a entrada, e a desconfiança é vãde o Cura ter bolsa chã, se a vontade é tão sobrada. OBRIGADOS OS ORDENANDOS A CANTAR O CANTO CHÃO DESAFINARAM PERTURBADOS A VISTA DO PRELADO, E OS OBRIGOU, A QUE ESTUDASSEM OS SETE SIGNOS. CELEBRA O POETA ESTE CASO, E LOUVA A PREDICA, QUE FEZ SUA ILUSTRÍSSIMA. Senhor; os Padres daqui por b quadro, e por b mol cantam bem ré mi fá sol, cantam mal lá sol fá mi:a razão, que eu nisto ouvi, e tenho para vos dar,é, que como no ordenar fazem tanto por luzir,cantam bem para subir,cantam mal para baixar.Porém como cantariam os pobres perante vós?tão bem cantariam sós,quão mal, onde vos ouviam:quando o fabordão erguiam cad'um parece, que berra,e se um dissona, o outro erra, mui justo me pareceu,que sempre à vista do Céu fique abatido, o que é terra.Os Padres cantaram mal como está já pressuposto,e inda assim vos deram gosto, que eu vi no riso o sinal.foi-se logo cada qualdireito às suas pousadas a estudar nas tabuadasda música os sete signos,não por cantar a Deus hinos, mas por vos dar badaladas.Vós com voz tão doce, e grata enleastes meus sentidos,que ficaram meus ouvidos, engastados nessa prata:tanto o povo se desataouvindo os vossos espíritos!que com laudatórios gritosdou eu fé, que uma Donzela disse, qual outra Marcela, o cântico Beneditos. A MORTE VIOLENTA QUE LUIZ FERREIRA DE NORONHA CAPITÃO DA GUARDA DO GOVERNADOR ANTÔNIO LUIZ DEU À JOSÉ DE MELLO SOBRINHO DESTE PRELADO. Brilha em seu auge a mais luzida estrela,Em sua pompa existe a flor mais pura,Se esta do prado frágil formosura, Brilhante ostentação do céu aquela.Quando ousada uma nuvem a atropela,Se a outra troca em lástima a candura,Que há também para estrelas sombra escura, Se para flores há, quem as não zela.Estrela e flor, José, em ti se encerra,Porque ser flor, e estrela mereceu Teu garbo, a quem a Parca hoje desterra.E para se admirar o indulto teu, Como flor te sepultas cá na terra,Como estrela ressurges lá no céu. AO RETIRO QUE FEZ ESTE ILUSTRÍSSIMO PRELADO SENTIDISSIMO, E MAGOADO PELA TIRANA, E VIOLENTA MORTE QUE O CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREIRA DE NORONHA DEU A SEU SOBRINHO. Um benemérito peito, uma Sacra Dignidadesentir vem na soledadeda parca o cruel efeito:que de um golpe sem respeitoquis cortar o vital fio,sem atender Senhorio,nem ver, o despojo horrendo, de quem se agravara, vendo desautorizado o brio.Já de todo o mal distando em Belém busca o retiro, onde um, e outro suspiroa pena estão aumentando:e no pesar contemplando jamais será divertido,vendo de todo perdidopor culpa de um traidor vil aquele Adónis gentila cadáver reduzidoSe a lei se deve observar, como agora falta, e tarda? a Justiça apenas guarda,que agradou por aguardar: privou por se depravarpela via nunca usada,deu ao vício franca entrada, e bem se pode entender,que enquanto vivo há de ser privado pela privada.Mas que muito haja amparado um Calígula tiranoa seu amigo inumanoCapitão de cama, e lado?o vulgo tem murmurado,e a maldade não se doma,e a sem-razão, que se assoma, como demais já sobejacontra um Ministro da Igreja um nefando de Sodoma. AOS MISSIONÁRIOS, À QUEM O ARCEBISPO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEUS RECOMENDAVA MUYTO AS VIAS SACRAS, QUE ENCHENDO A CIDADE DE CRUZES CHAMAVAM DO PÚLPITO AS PESSOAS POR SEUS NOMES, REPREENDENDO, À QUEM FALTAVA. Via de perfeição é a sacra via, Via do céu, caminho da verdade:Mas ir ao Céu com tal publicidade, Mais que à virtude, o boto à hipocrisia.O ódio é d'alma infame companhia, A paz deixou-a Deus à cristandade:Mas arrastar por força, uma vontade, Em vez de perfeição é tirania.O dar pregões do púlpito e indecência, Que de Fulano? venha aqui sicrano:Porque o pecado, o pecador se veja:E próprio de um Porteiro d'audiência,E se nisto maldigo, ou mal me engano, Eu me submeto à Santa Madre Igreja. A CERTO PROVINCIAL DE CERTA REGIÃO QUE PREGOU O MANDATO EM TERMOS TA, RIDÍCULOS QUE MAIS SERVIU DE MOTIVO DE RISO, DO QUE DECOMPAIXÃO. Inda está por decidir, meu Padre Provincial,se aquele sermão fatal foi de chorar, se de rir:cada qual pode inferir,o que melhor lhe estiver,porque aquela má mulher da perversa sinagogafez no sermão tal chinoga,que o não deixou entender.Certo, que este lava-pés me deixou escangalhado,e quanto a mim foi traçado para risonho entremez:eu lhe quero dar das trêsa outro qualquer Pregador,seja ele quem quer que for, já filósofo, ou já letrado,e quero perder dobrado, se fizer outro pior.E vossa Paternidade, pelo que deve à virtude,de tais pensamentos mude,que prega mal na verdade: faça atos de caridade, e trate de se emendar,não nos venha mais pregar, que jurou o Mestre Escola,que por pregar pare Angola o haviam de degradar. AO CURA DA SÉ QUE ERA NAQUELLE TEMPO, INTRODUZIDA ALI POR DINHEIRO, E COM PRESUNÇÕES DE NAMORADO SATIRIZA O POETA COMO CRIATURA DO PRELADO. O Cura, a quem toca a cura de curar esta cidade,cheia a tem de enfermidadetão mortal, que não tem cura:dizem, que a si só se cura de uma natural sezão, que lhe dá na ocasiãode ver as Moças no eirado,com que o Cura é o curado, e as Moças seu cura são.Desta meizinha se argüi, que ao tal Cura assezoadomais lhe rende o ser curado,que o Curado, que possui, grande virtude lhe influi o curado exterior:mas o vício interiorAmor curá-lo procura, porque Amor todo loucura, se a cura é de louco amor.Disto cura o nosso Cura, porque é curador maldito,mas ao mal de ser cabrito nunca pôde dar-lhe cura:É verdade, que a tonsura meteu o Cabra na Sé, e quando vai dizer "TeDeum laudamus" aos doentes, se lhe resvale entre dentes, e em lugar de Te diz me.Como ser douto cobiça,a qualquer Moça de jeito onde pôs o seu direito,logo acha, que tem justiça: a dar-lhe favor se atiça,e para o fazer com arte,não só favorece a parte,mas toda a prosápia má, se justiça lhe não dá,lhe dá direito, que farte.Porque o demo lhe procura tecer laços, e urdir teias,não cura de almas alheias, e só do seu corpo cura: debaixo da capa escurade um beato capuchinho é beato tão malignoo cura, que por seu mal com calva sacerdotalé sacerdote calvino.Em um tempo é tão velhaco, tão dissimulado, e tanto,que só por parecer santocanoniza em santo um caco:se conforme o adágio fraco ninguém pode dar, senão aquilo, que tem na mão,claro está que no seu tanto não faria um ladrão santo, senão um Santo Ladrão.Estou em crer, que hoje em dia já os cânones sagradosnão reputam por pecados pecados de simonia: os que vêem tanta ousadia, com que comprados estão os curados mão por mão,devem crer, como já creram,que ou os cânones morreram, ou então a Santa unção. AO ILUSTRÍSSIMO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEOS MUDANDO-SE PARA O SEU NOVO PALÁCIO, QUE COMPROU. Sacro Pastor da América florida,Que para o bom regímen do teu gadoDe exemplo fabricastes o cajado,E de frauta te sene a mesma vida.Outros tua virtude esclarecidaCantem: mas teu palácio por sagrado Cante Apolo de raios coroado Na musa humilde de álamos cingida.Gusano a tua folha me alimente, Tua sombra me ampare peregrino, Passarinho o teu ramo me sustente.Tecerei tua historia em ouro fino,De meus versos serás templo freqüente, Onde glórias te cante de continuo. O DEÃO ANDRÉ GOMES CAVEIRA SE INTRODUZIU DE TAL MODO COM ESTE PRELADO EM DESABONO DO POETA, QUE ESTIMULADO O DITO FEZ O SEGUINTE MOTE O mundo vai-se acabando, cada qual olhe por si,porque dizem, que anda aqui uma Caveira falando.Chegou o nosso Prelado tão galhardo, e tão luzido, tão douro, e esclarecido,tão nobre, e tão ilustrado, e não houve Prebendado, que para o ir enganandose lhe não fosse chegando; mas só Caveira asnaval é, quem co Prelado val:O mundo vai-se acabando.Como não há de acabar-se, se uma Caveira tão feia ao Prelado galanteiaa risco de enamorar-se!onde se viu galantear-se o roxete carmesipela caveira de Heli?não é mentira, é verdade; pois para seguridadecada qual olhe por si.Olhe por si cada qual,e não se dêem por seguros,sabendo, que anda extramuros esta Caveira infernal:ela anda pelo arrebal, e dacolá para aqui,eu por mil partes a vi: o leigo, o frade, e o monge não a imaginem de longe,Porque dizem, que anda aqui.Aqui anda, e aqui está rosnando sempre entre nós,Deão com cara de algoz, e pertensões de Bispá: ele é, o que os pontos dá, e os vícios vai acusandocom zelo torpe, e nefando,com que nos bota a perder:porque quem não há de crer Uma Caveira falando. COMO ACREDITOU ESTE PRELADO MAIS OS MEXERICOS DE CAVEIRA, DOQUE AS LISONJA DO POETA, LHE FEZ ESTA SÁTIRA Eu, que me não sei calar, mas antes tenho por míngua,não purgar-se qualquer língua a risco de arrebentar: vos quero, amigo, contar,pois sois o meu secretário,um sucesso extraordinário, um caso tremendo, e atroz; porém fique aqui entre nós.Do Confessor Jesuíta, que ao ladrão do confessado não só absolve o pecado,mas os furtos lhe alcovita:do Percursor da visita,que na vanguarda marchando vai pedindo, e vai tirando, o demo há de ser algoz:porém fique aqui entre nós.O ladronaço em rigor não tem para que o dizerfurtos, que antes de os fazer, já os sabe o confessor: cala-os para ouvir melhor, pois com ofício alternado confessor, e confessado ali se barbeiam sós: porém fique aqui entre nós.Aqui o Ladrão consente sem castigo, e com escusa, pois do mesmo se lhe acusa o confessor delinqüente: ambos alternadamenteum a outro, e outro a um o pecado, que é comum confessa em comua voz: porém fique aqui entre nós.Um a outro a mor cautela vem a ser neste acidente confessor, e penitente,porque fique ela por ela: o demo em tanta mazela diz: faço, porque façais,absolvo, porque absolvais, pacto inopinado pôs;porém fique aqui entre nós.Não se dá a este Ladrão penitência em caso algum, e somente em um jejum se tira a consolação: ele estará como um cão de levar a bofetada: mas na cara ladrilhadaemenda o pejo não pôs:porém fique aqui entre nós.Mecânica disciplina vem a impor por derradeiro o confessor marceneiro ao pecador carapina:e como qualquer se inclina a furtar, e mais furtar,se conjura a escavacaras bolsas um par de enxós: porém fique aqui entre nós.O tal confessor me abisma, que releve, e não se ofenda,que um Frade Sagrado venda o sagrado óleo da crisma: por dinheiro a gente crisma, não por cera, havendo queixa, que nem a da orelha deixa,onde crismando a mão pôs: porém fique aqui entre nós.Que em toda a Franciscania não achasse um mau Ladrão,quem lhe ouvisse a confissão, mais que um padre da panhia!nisto, amigo, há simpatia,e é, porque lhe veio a pêlo,que um atando vá no orelo, e outro enfiando no cós:porém fique aqui entre nós.Que tanta culpa mortal se absolva! eu perco o tino, pois absolve um Teatinopecados de pedra, e cal:quem em vida monacalquer dar à Filha um debatecondenando em dote, ou date vem a dar-lhe o pão, e a noz; porém fique aqui entre nós.As Freiras com santas sedes saem condenadas em pedra, quando o ladronaço medraroubando pedra, e paredes:vós, amigo, que isto vedes,deveis a Deus graças dar por vos fazer secular,e não zote de albernoz:porém fique aqui entre nós. LOUVA O POETA O SERMÃO, QUE PREGOU CERTO MESTRE NA FESTA, QUE A JUSTIÇA FAZ, AO ESPIRITO SANTO NO CONVENTO DO CARMO NO ANO 1686. Alto sermão, egrégio, e soberanoEm forma tão civil, tão erudita,Que sendo o pregador um carmelita, Julguei eu, que pregava um Ulpiano.Não desfez Alexandre o nó Gordiano,Co'a espada o rompeu (traça esquisita)Soltais na forma legal, e requisitaSoltais o nó do magistrado arcano.Ó Príncipes, Pontífices, Monarcas,Se o Mestre excede a Bártolos, e Abades Vesti-lhe a toga, despojai-lhe alparcas.Rompam-se logo as leis das Majestades,Ouçam Ministros sempre os Patriarcas,Pois mais podem, que leis, autoridades. CELEBRA O POETA (ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO), A BURLA, QUEFIZERAM OS RELIGIOSOS COM UMA PATENTE FALSA DE PRIOR A FREI MIGUEL NOVELOS, APELIDADO O LATINO POR DIVERTIMENTO EM UM DIA DE MUITA CHUVA. Victor, meu Padre Latino, que só vós sabeis latim,que agora se soube enfim,para um breve tão divino:era num dia mofinode chuva, que as canas rega, eis a patente aqui chega,e eu por milagre o suspeito na Igreja Latina feito,para se pregar na grega.Os sinos se repicaram de seu moto natural,porque o Padre Provincial,e outros Padres lhe ordenaram:os mais Frades se abalaram a lhe dar obediência,e eu em tanta complacência, por não faltar ao primor, dizia a um Victor Prior,Victor, vossa Reverência.Estava aqui retraído o Doutor Gregório, e vendo um breve tão reverendoficou co queixo caído:mas tornando em seu sentido de galhofa perenal,que não vi patente igual,disse: e é cousa patente,que se a patente não mente, é obra de pedra, e cal.Victor, Victor se dizia, e em prazer tão repentino, sendo os vivas ao latino soavam a ingresia:era tanta a fradaria,que nesta casa Carmela não cabia refestela,mas recolheram-se enfim cada qual ao seu celim,e eu fiquei na minha cela. AO VIGÁRIO DA VILA DE S. FRANCISCO POR UMA PENDÊNCIA, QUE TEVE COM UM OURIVES A RESPEITO DE UMA MULATA, QUE SE DIZIA CORRER POR SUA CONTA. Naquele grande motim, onde acudiu tanta gente, a título de valentetambém veio valentim:puxou pelo seu afim,e tirando-lhe a barriga,você se quer, que lho diga,disse ao Ourives da prata, na obra desta Mulatamete muita falsa liga: Briga, briga.É homem tão desalmado, que por lhe a prata faltar,a estar sempre a trabalharbate no vaso sagrado: não vê que está excomungado, porque com tanta fadiga a peça da igreja obriganuma casa excomungada com censura reservada,pela qual Deus o castiga: Briga, briga.Porque com modos violentos a um vigário tão capazsobre quatro, que já traz,cornos, lhe põe quatrocentos!deixe-se desses intentos, e reponha a rapariga,pois a repô-la se obriga,quando afirma, que a possui, e se a razão não conclui, vai esta ponta à barriga: Briga, briga.Senhor Ourives, vocênão é ourives da prata?pois que quer dessa Mulata,que cobre, ou tambaca é?Restitua a Moça, que é peça da Igreja antiga:restitua a rapariga,que se vingará o Vigáriotalvez no confessionário, e talvez na desobriga: Briga, briga.A Mulata já lhe pesa de trocar odre por odre,pois o leigo é membro podre, e o Padre membro da igreja:sempre esta telha goteja,sempre dá grão esta espiga, e a bola da raparigaquer desfazer esta troca, e deixando a sua tocaquer fazer co Padre liga Briga, briga.Largai a Mulata, e seja logo a bom partido,que como tem delinqüido se quer acolher à igreja: porque todo o mundo veja,que quando a carne inimiga tenta a uma rapariga,quer no cabo, quer no rabo a Igreja vence ao diabocom outra qualquer cantiga. Briga, briga. A OUTRO VIGÁRIO DE CERTA FREGUESIA, CONTRA QUEM SE AMOTINAVAM OS FREGUESES POR SER MUYTO AMBICIOSO. Reverendo vigário,Que é título de zotes ordinário,Como sendo tão bobo,E tendo tão larguíssimas orelhas,Fogem vossas ovelhasDe vós, como se fôsseis voraz Lobo.O certo é, que sois Pastor danado,E temo, que se a golpe vem de fouce, Vos há de cada ovelha dar um couce:Sirva de exemplo a vosso desalinho,O que ovelhas têm feito ao Padre Anjinho, Que por sua tontice, e sua asnia o tem já embolsado na euxovia;Porém a vós, que sois fidalgo asneiro, Temo, que hão de fazer-vos camareiro.Quisestes tosquear o vosso gado,E saístes do intento tosqueado;Não vos cai em capelo, O que o provérbio tantas vezes canta, Que quem ousadamente se adianta. Em vez de tosquear fica sem pêlo?Intentastes sangrar toda a comarca,Mas ela vos sangrou na veia d'arcaPois ficando faminto, e sem sustento,Heis de buscar a dente qual jumentoErva para o jantar, e para a ceia,E se talvez o campo a escasseia,Mirrado heis de acabar no campo lhano, Fazendo quarentena todo o ano:Mas então poderá vossa porfia Declarar aos Fregueses cada dia.Sois tão grande velhaco,Que a pura excomunhão meteis no saco:Já diz a freguesia,Que tendes de Saturno a natureza,Pois os Filhos tratais com tal crueza,Que os comeis, e roubais, qual uma harpia; Valha-vos; mas quem digo, que vos valha?Valha-vos ser um zote, e um canalha:Mixelo hoje de chispo, Ontem um passa-aqui do Arcebispo.Mas oh se Deus a todos nos livraraDe Marão com poder, vilão com vara! Fábula dos rapazes, e bandarras, conto do lar, cantiga das guitarras.Enquanto vos não parte algum corisco,Que talvez vos despreza como cisco, E fugindo a vileza desse couro,Vos vai poupando a cortadora espada,Azagaia amolada,A veloz seta, o rápido pelouro:Dizei a um confessor dos aprovados, Vossos torpes pecados,Que se bem o fazeis, como é preciso Fareis um dia cousa de juízo:E uma vez confessado,Como vos tenha Deus já perdoado,Todos vos perdoaremosOs escândalos mil, que de vós temos,E comendo o suor de vosso rostoDareis a Deus prazer, aos homens gosto. AO VIGÁRIO ANTÔNIO MARQUES DE PERA DA ENCOMENDADO NA IGREJA DA Va DE S. FRANCISCO AMBICIOSO, E DESCONHECIDO. Da tua Perada mica não te espantes, que me enoje, porque é força, que a entoje sendo doce de botica: o gosto não se me aplicaa uma conserva afamada,e em botes tão redomada,que sempre por ter que almoces, achas para tão maus doces a tutia preparada.Se tua Tia arganaz te fez essa alcomonia,com colher não te faria,com espátula te faz:criaste-te de rapazco pingue dessas redomas, e hoje tal asco lhe tomas,que tendo uma herança rica hás raízes da botica,contudo não tens, que comas.Teu juízo é tão confuso, que quando a qualquer cristão lhe entra o uso de rezão,de então lhe perdeste o uso: sempre foste tão obtuso, que já desde estudantete tinham por um doudete, porque eras visto por alto, na fala falso contralto,na vista fino falsete.Correndo os anos cresceste, e se dizia em sussurro,que era o teu crescer de burro,pois cresceste, e aborreceste: logo em tudo te meteste, querendo ser eminentenas artes, que estuda a gente,mas deixou-te a tua asniaAbel na filosofia, na poesia inocente.Deram-te as primeiras linhas versos de tão baixa esfera, que o seu menor erro eraserem feitos às Negrinhas: com estas mesmas pretinhas, por mais que te desbatizes, gastaste os bens infelizesdo Marquês fino herbolário, porque todo o Boticário é mui rico de raízes.Sendo um zote tão supino, és tão confiado alvar,que andas por i a pregar geringonças ao divino: pregas como um capuchino, porque essa traça madura um curado te assegura, crendo Sua Senhoria, que a botica te dariaas virtudes pare a cura.Mas ele se acha enganado, porque vê evidentemente,que os botes para um doentesão, mas não pare um curado: entraste tão esfaimado a comer do sacrifício,que todo o futuro ofício cantaste sobre fiado, pelo tirar de contadoao dono do benefício.Nenhuma outra cousa é este andar dos teus alparques, mais que ser Filho de Marques vizinho da Santa Sé:outro da mesma ralétão Marques, e tão bribante te serve agora de Atlante, porque para conjurer-se, é facil de congregar-se um com outro semelhante. AO PADRE DAMASO DA SILVA PARENTE DO POETA, E SEU OPOSTO, HOMEM DESBOCADO, E PRESUNÇOSO COM GRANDES IMPULSOS DE SER VIGÁRIO, SENDO POR ALGUM TEMPO EM NOSSA SENHORA DO LORETO. Dâmaso, aquele madraço, que em pés, mãos, e mais miúdos pode bem dar seis, e ásao major Frisão de Hamburgo:Cuja boca é mentideiro, onde acode todo o vulgo a escutar sobre la tardelas mentiras como punho:Mentideiro freqüentado de quantos senhores burros perdem o nome de limpos pela amizade de um sujo.Cuja língua é relação aonde acham os mais puros para acusar um fiscalpara cortar um verdugo.Zote muito parecido aos vícios todos do mundo,pois nunca os alheios corta,sem dar no seu próprio escudo:Santo Antônio de baeta, que em toda a parte do mundo os casos, que sucederam, viu, e foi presente a tudo: O Padre papa jantares, hóspede tão importuno,que para todo o banquetetraz sempre de trote o bucho:Professo da providência, que sem lograr bazaruco, para passar todo um anonem dous vinténs faz de custo:Que os amigos o sustentam, e lhe dão como de juroo jantar, quando lhes cabe a cada qual por seu turno.Essa vez, que tem dinheiro, que é de sete em sete lustros:três vinténs com um tostão,ou dous tostões quando muito:Com um vintém de bananas, e de farinha dous punhos, para passar dia, e meiotem certo o pão, e conduto: Lisonjeiro sem recato adulador sem rebuço,que por papar-lhe um jantarde um sacristão faz um Núncio: De um Tambor um General, um Branco de um Mamaluco, de uma senzala um palácio, e um galeão de um pantufo. Em passando a ocasião, tendo já repleto o bucho, desanda co'a taramela,e a todos despe de tudo:Outro sátiro de Esopo,Que co mesmo bafo astutoEsfriava o caldo quente, E aquentava o frio punho:O Zote, que tudo sabeO grande JurisconsultoDos Litígios fedorentos Desta cidade monturo:O Bártolo de improviso,O subitâneo Licurgo,Que anoitece um sabe-nada, E amanhece um sabe-tudo:O Letrado grátis dato, e o que com saber infusoquer ser Legista sem mestre, canonista sem estudo:Agraduado de douto na academia dos burros,que é braba universidade para doutorar brandúzios: desaforado sem susto, entremetido sem riso,e sem desar abelhudo: Filho da puta com dita, alcoviteiro sem lucro,cunhado do Mestre-Escola, parente que preza muito. Fraquíssimo pelas mãos, e valentão pelo vulto,no corpo um grande de Espanha, no sangue escória do mundo. Este tal, de quem falamos, como tem grandes impulsos de ser batiza-crianças,para ser soca-defuntos:A Majestade d'El-Rei tem já com mil esconjurosordenado, que o não colem nem numa igreja de juncos.Ele por matar desejosfoi-se ao adro devoluto da Senhora do Loreto,onde está Pároco intruso:Ouvir é um grande prazer, e vê-lo é um gosto sumo,quando diz "os meus fregueses”sem temor de um abrenuntio.Item é um grande prazer nas manhãs, em que madrugo vê-lo repicar o sino,para congregar o vulgo.E como ninguém acode, se fica o triste mazulo em solitária estaçãodizendo missa aos defuntos: Quando o Frisão considero, o menos que dele cuido, é ser Pároco bonecofeito de trapos imundos.RETRATO DO MESMO CLÉRIGO. Pois me enfada o teu feitio, quero, Frisão, neste diaretratar-te em quatro versosas maravi, maravi, maravilhas.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão, da Bahia, que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhas.A cara é um fardo de arroz, que por larga, e por comprida é ração de um Elefante vindo da Índia.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhasA boca desempenada é a ponte de Coimbra,onde não entram, nem saem, mais que mentiras.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahiaque está retratadoàs maravi, maravi, maravilhas.Não é a língua de vaca por maldizente, e maldita, mas pelo muito, que corta de Tiriricas.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhas.No corpanzil torreão a natureza previstaformou a fresta da boca para guarita.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhas.Quisera as mãos comparar-lhe às do Gigante Golias,se as do Gigante não foramtão pequeninas.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhasOs ossos de cada pé encher podem de relíquias para toda a cristandade as sacristias.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhas.É grande conimbricense, sem jamais pôr pé em Coimbra, e sendo ignorante sabe mais que galinha.Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia,que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhas.Como na lei de Mafoma não se argumenta, e se briga ele, que não argumenta, tudo porfia.Ouçam, olhem, venham, venham, verãoo Frisão da Bahia, que está retratadoàs maravi, maravi, maravilhas. AO MESMO CLÉRIGO APELIDANDO DE ASNO AO POETA Padre Frisão, se vossa ReverênciaTem licença do seu vocabulárioPara me pôr um nome incerto, e vário, Pode fazê-lo em sua consciência:Mas se não tem licença, em penitênciaDe ser tão atrevido, e temerário Lhe quero dar com todo o Calendário, Mais que a testa lhe rompa, e a paciência.Magano, infame, vil alcoviteiro,Das dodas corretor por dous tostões, E enfim dos arreitaços alveitar:Tudo isto é notório ao mundo inteiro, Se não seres tu obra dos culhões De Duarte Garcia de Bivar. AO MESMO COM PRESUNÇÕES DE SÁBIO, E ENGENHOSO. Este Padre Frisão, este sandeuTudo o demo lhe deu, e lhe outorgou,Não sabe musa , que estudou, Mas sabe as ciências, que nunca aprendeu.Entre catervas de asnos se meteu,E entre corjas de bestas se aclamou, Naquela Salamanca o doutorou, E nesta salacega floresceu.Que é um grande alquimista, isso não nego, Que alquimistas do esterco tiram ouro, Se cremos seus apógrafos conselhos.E o Frisão as Irmãs pondo ao pespego,Era força tirar grande tesouro,Pois soube em ouro converter pentelhos. A OUTRO CLÉRIGO AMIGO DO FRIZÃO, QUE SE DIZIA ESTAR AMANCEBADO DE PORTAS ADENTRO COM DUAS MULHERES COM UMA NEGRA, E OUTRA MULATA. A vós, Padre Baltasar, vão os meus versos direitos, porque são vossos defeitos mais que as areias do mar: e bem que estais num lugar tão remoto, e tão profundo com concubinato imundo,como sois Padre Miranda, o vosso pobre tresandapelas conteiras do mundo.Cá temos averiguado, que os vossos concubinatossão como um par de sapatos um negro, outro apolvilhado:de uma, e outra cor calçado saís pela porta fora,hora negra, e parda hora, que um zote camaleãotoda a cor toma, senãoque a da vergonha o não cora.Vossa luxúria indiscreta é tão pesada, e violenta,que em dous putões se sustenta uma Mulata, e uma Preta:c’uma puta se aquietao membro mais desonesto,porém o vosso indigesto,há mister na ocasião a negra para trovão,e a parda para cabresto.Sem uma, e outra cadela não se embarca o Polifemo,porque a negra o leva a remo, e a mulata o leva a vela:ele vai por sentinela,porque elas não dêem a bomba; porém como qualquer zombado Padre, que maravilha,que elas disponham da quilha, e ele ao feder faça tromba.Elas sem mágoa, nem dor lhe põem os cornos em pinha, porque a puta, e a galinha, têm o ofício de pôr:ovos a franga pior,cornos a puta mais casta,e quando a negra se agasta, e c’o Padre se disputa,lhe diz, que antes quer ser puta, que fazer com ele casta.A negrinha se pespega c’um amigão de corona,que sempre o Frisão se entona, que ao maior amigo apega: a mulatinha se esfregac’um mestiço requeimado destes do pernil tostado,que a cunha do mesmo pau em obras de bacalhau fecha como cadeado.Com toda esta cornualha diz ele cego do amor,que as negras tudo é primor, e as brancas tudo canalha:isto faz a erva, e palha,de que o burro se sustenta,que um destes não se contenta salvo se lhe dão por capapara a rua numa gualdrapa, para a cama uma jumenta.Há bulhas minto renhidas em havendo algum ciúme,porque ele sempre presumede as ver sempre presumidas: mas elas de mui queridasvendo, que o Padre de borra em fogo de amor se torra,andam por negar-lhe a graça elas com ele de massa,se ele com elas à porra.Veio uma noite de fora, e achando em seu vitupério a mulata em adultériotocou alarma por fora: e por que pegou com morano raio do chumbo ardente, foi-se o cão seguramente:que como estava o coitado tão leve, e descarregado se pôde ir livremente.Porque é grande demandão o senhor zote Miranda,que tudo, o que vê demanda,seja de quem for o chão: por isso o Padre cabrãode continuo está a jurarque os cães lhe hão de pagar, e que as fadas, que tem dado, lhas hão de dar de contado, e ele as há de recadar. AO PADRE MANUEL ALVARES CAPELÃO DA MARAPÉ REMOQUEANDO AO POETA UMA PEDRADA QUE LHE DERAM DE NOITE ESTANDO SE PROVENDO:PERGUNTANDO-LHE PORQUE SE NÃO SATIRIZAVA DELA! ESCANDALIZADO, E PICADO, PORQUE O POETA HAVIA SATIRIZADO OS CLÉRIGOS, QUE VINHAM DE PORTUGAL. Não me espanto, que você, meu Padre, e meu camarada, me desse a sua cornada sendo rês de Marapé: mas o que lhe lembro, é, que se acaso a carapuça da sátira se lhe aguça, e na testa se ajustou,aa chuçada eu não lhe dou, você se meta na chuça.E se por estes respeitos diz, que versos não farei à pedrada, que eu leveiquando fazia os meus feitos:agora os dará por feitos,pois eu de boga arrancada a uma, e outra pedrada os faço, à que levei já,e à que agora você dá,que é inda maior pedrada.Era pelo alto serão, fazia um luar tremendo, quando eu estava fazendo ou câmara, ou vereação:não sei, que notícia entãoteve um Moço, um boa-peça, pôs-se à janela com pressa tão sem propósito algum, que quis ter comigo umquebradeiro de cabeça.Cum torrão na mão se apresta, e tirando-o com seu momo me fez o memento homo,pondo-me a terra na testa: fez-me uma pequena fresta, de que arto Sangue corria, mas eu disse, quem seria um Médico tão sem lei,que primeiro me purguei,do que levasse a sangria.Ergui-me com pressa tanta, que um amigo me gritou, inda agora se purgou,tão depressa se levanta?Sim, Senhor, de que se espanta?Se este Médico, este tramposo é médico tão forçoso,que faz levantar num diadepois de curso, e sangria ao doente mais mimoso.Este caso, e desventura foi na verdade, contado,e sendo eu por mim curado, o Moço me deu a cura:com uma, e outra brabura jurei, e prometi, quelhe daria um pontapé: mas o Moço acautelado me deixou calamocado para servir a você. ENTRA AGORA O POETA A SATIRIZAR O DITO PADRE. Reverendo Padre Alvar, basta, que por vossos modos saís a campo por todos os Mariolas de altar? mal podia em vos falar,quem notícia, nem suspeita tem d’asno de tão má seita: mas como vos veio ao justo a sátira, estais com susto, de que por vós fora feita.Convosco a minha camena não fala, se vos não poupa, porque sois mui fraca roupa para alvo da minha pena: se alguém se queima, e condena, por que vê, que os meus apodos vão frisando por seus modos, ninguém os tome por si, um pelo outro isso si,que assim frisarão com todos.Vós com malícia veloz aplicai-o a um coitado,que este tal terá cuidado de vo-lo aplicar a vós:desta aplicação atrozde um por outro, e outro por um, como não livrar nenhum, ninguém do Poeta então se virá a queixar, senãodo poema que é comum.Bonetes na minha mão, como os lanço ao ar direitos, caindo em vários sujeitosnuns servem, e noutros não: não consiste o seu senão,nem menos está o seu mal na obra, ou no oficial, está na torpe cabeça,que se ajusta, e endereça pelos moldes de obra tal.E pois, Padre, vos importa nos meus moldes não entrar, deveis logo endireitara cabeça, que anda torta: mas sendo uma praça morta, e um zotíssimo ignorante vir-vos-á a Musa picantea vós, Padre mentecapto, de molde como sapato, e ajustada como um guante.Outra vez vos não metais sentir alheios trabalhos,que dirão, que comeis alhos galegos, pois vos queimais:e porque melhor saibais,que os zotes, de que haveis dor, são de abatido valor,vede nos vossos sentidos,quais serão os defendidos,sendo vós o defensor. AO PADRE MANUEL DOMINGUES LOUREIRO QUE REHUSANDO IR POR CAPELÃO PARA ANGOLA POR ORDEM DE SUA ILUSTRÍSSIMA, FOI AO DEPOIS PREZO, E MALTRATADO, PORQUE RESISTIU AS ORDENS DO MESMO PRELADO. Para esta Angola enviado vem por força do destino, um marinheiro ao divino, ou mariola sagrado:com ser no monte gerado o espírito lhe notei,que com ser besta de lei,tanto o ser vilão esconde,que vem da vila do conde morar na casa d'EI-Rei.Por não querer embarcar com ousadia sobejaatado das mãos da Igreja veio ao braço secular:a empuxões, e a gritardeu baque o Padre Loureiro: riu-se muito o carcereiro,mas eu muito mais me ri, pois nunca Loureiro vienxertado em Limoeiro.No argumento, com que vem da navegação moral,diz bem, e argumenta mal, diz mal, e argumenta bem:porém não cuide ninguém, que com tanta matinada deixou de fazer jornada,porque a sua teima astuta o pôs de coberta enxuta, mas mal acondicionada.O Mestre, ou o capitão(diz o Padre Fr. Orelo), que há de levar um capelo, se não levar capelão:vinha branco, e negro pãodiz, que no mar fez a guerra, pois logo sem razão berra, quando na passada mágoa trouxe vinho como água, e farinha como terra.Com gritos a casa atroa, e quando o caso distinga, quer vomitar na moxinga, antes que cagar na proa:querer levá-lo a Lisboacom brandura, e com carinho,mas o Padre é bebedinho, e ancorado a porfiardiz, que não quer navegarsalvo por um mar de vinho.Aquentou muito a História sobre outras ações velhacaster-lhe aborcado as patacas .o magano do Chicória:mas sendo a graça notória, diz o Padre na estacada, que ficarão a pancada,quando um, e outro desfeche se o Loureiro de escabeche, o Chicória de selada. AO VIGÁRIO DA MADRE DE DEOS MANUEL RODRIGUES QUEIXA O POETA DE TEZ CLÉRIGOS QUE LHE FORAM A CASA PELA FESTA DO NATAL, ONDE TAMBÉM ELE ESTAVA E COM GALANTARIA O PERSUADE, A QUE SACUDA OS HOSPEDES FORA DE CASA PELO GASTO, QUE FAZIAM. Padre, a casa está abrasada, porque é mais danosa empresa pôr três bocas numa mesa,que trezentas numa espada:esta trindade sagrada,com que toda a case abafa a tomara ver já safa,porque à casa não convém trindade, que em si contém três Pessoas, e uma estafa.Vós não podeis sem dar pena pôr à mesa três Pessoas,nem sustentar três coroas em cabeça tão pequena:se a fortuna vos condena, que vejais a casa rasacom gente, que tudo abrasa,não sofro, que desta vez vos venham coroas três fazer princípio de casa.Se estamos na Epifania, e os três coroas são Magos, hão de fazer mil estragos no caju, na valancia:mágica é feitiçaria,e a terra é tão pouco esperta, e a gentinha tão incerta,que os três a vosso pesarnão vos hão de oferta dar,e hão de mamar-vos a oferta.O incenso, o ouro, a mirra que eles vos hão de deixar, é, que vos hão de mirrar,se vos não defende um irra: o Crasto por pouco espirra,porque é dado a valentão, e se lhe formos à mãono comer, e no engolir, aqui nos há de frigircomo postas de cação.AOS MESMOS PADRES HOSPEDES ENTRE OS QUAIS VINHA O Pe PERICO, QUE ERA PEQUENINO.Vieram Sacerdotes dois e meioPara a casa do grande sacerdote,Dous e meio couberam em um bote, Notável carga foi para o granjeiro.O barco, e o Arrais, que ia no meio,Tanto que em terra pôs um, e outro zote,Se foi buscar a vida a todo o trote, Deixando a carga, o susto, e o recreio.Assustei-me em ver tanta clerezia,Que como o trago enfermo de remela, Cuidei, vinham rezar-me a agonia.Porém ao pôr da mesa, e postos nela,Entendi, que vieram da BahiaNão mais que por papar a cabidela. AO MESMO VIGÁRIO GALANTEIA O POETA FAZENDO CHISTES DE UM MIMO, QUE LHE MANDARA BRITES UMA GRACIOSA COMADRE SUA, ENTRE O QUAL VINHA PARA O POETA UM CAJÚ. Ao Padre Vigário a flor, ao pobre Doutor o fruto,há nisto, que dizer, muito, e dirá muito o Doutor:tenho por grande favor,que a título de compadredeis, Brites, a flor ao Padre:mas dando-me o fruto a mim, o que se me deu assim,é força, que mais me quadre.Quadra-me, que o fruto influa, que uma flor, que eu não queria,Se dê, a quem principia e o fruto, a quem continua: se o fruto faz, que se argua,que eu sou o dono da planta, a flor seja tanto, ou quanta,sempre o dono a quer perdida, porque pelo chão caídafaz, que o fruto se adianta.Quem é do fruto Senhor sabe as Leis d'agricultura,que todo o fruto assegura, e despreza toda a flor:e inda que chamam favor dar a sua flor a Damaàquele, por quem se inflama eu entendo de outro modo,e ao fruto mais me acomodo,que honra, e proveito se chama.Porque na testa vos entre o mistério, que isto encerra,quem me dá o fruto da terra, me pode dar do seu ventre:e porque se reconcentre este vaticínio imundono vosso peito fecundo, digo qual bem augureiro, que quem me deu o primeiro, me pode dar o segundo.O Padre andou muito tolo em vos estimar a flor,porque era folha o favor, e o meu todo era miolo: com meu favor me consolo de sorte, e tão por inteiro,que afirmou por derradeiro,que um favor, e outro suposto, eu levo de vós o gosto,e o Padre vigário o cheiro.Eu do Vigário zombei, porque vejo, que levouuma flor, que se murchou, e eu o fruto vos papei:este exemplo lhe gravei, y este desengaño doydela dicha, em que me estoy cantando a su flor ansi, que ayer maravilla fui,y oy sombra mia aun no soy.AO CELEBRE FR. JOANICO COMPREENDIDO EM LISBOA EM CRIMES DE SODOMITA.Furão das tripas, sanguessuga humana, cuja condição grave, meiga, e pia,sendo cristel dos Santos algum dia,hoje urinol dos presos vive ufana.Fero algoz já descortês profanaSua imagem do nicho da enxovia,Que esse amargoso traje em profecia Com a lombriga racional se dana.Ah, Joanico fatal, em que horóscopos,Ou porque à costa, ou porque à vante deste, Da camandola Irmão quebraste os copos.Enfim Papagaio humano te perdeste,Ou porque enfim darias nos cachopos, Ou porque em culis mundi te meteste. A FR. PASCAL QUE SENDO ABADE DE N. S. DAS BROTAS HOSPEDOU ALI COM GRANDEZA A D. ANGELA, E SEUS PAIS, QUE FORAM DE ROMARIA À AQUELE SANTUÁRIO. Prelado de tan alta perfecion,Que supo em un aplauso, en un festin Congregar en su casa um serafin Cercado de tan alta relacion:Ya mas tenga en su cargo dissension, Ni en sus Fraylecitos vea motin:Ninguno Hijuelo suyo sea ruin, Y los crie en su santa bendicion.Llena estè la cosina de sarten,Y siempre el refectorio abunde en pan, Que bien merece Frayle tan de bien.A quien el sacro bago se le danRegir la casa santa de Belém, Y que ya sela quite al soliman. A FR. TOMAS D'APRESENTAÇÃO PREGANDO EM TERMOS LACONICOS A PRIMEYRA DOMINGA DA QUARESMA. Padre Tomás, se Vossa ReverênciaNos pregar as Paixões desta arte mesma, Viremos a entender, que na Quaresma Não há mais pregador do que vossência.Pregar com tão lacônica eloqüênciaEm um só quarto, o que escrevo em resma,À fé, que o não fazia Frei Ledesma, Que pregava uma resma de abstinência.Quando pregar o vi, vi um São Francisco,Senão mais eficaz, menos chagado, E de o ter por um Anjo estive em risco.Mas como no pregar é tão azado,Achei, que no evangélico obelisco É Cristo no burel ressuscitado. UM AMIGO DESTE RELIGIOSO PEDIU AO POETA SUAS APROVAÇÕES SOBRE A MESMA PREDICA, A PEDITÓRIO DO MESMO PREGADOR NESTE. MOTE Louvar vossas orações é próprio do Pregador,e a mim me dá mais temoro Pregador, que os sermões.Só o vosso entendimento vos pode Tomás louvar, e eu se pudera imitarqualquer vosso pensamento: para mostrar seu talentofez um círculo em borrõesApeles com dous carvões; quem vira uma risca vossa? Riscai vós, para que eu possa Louvar vossas orações.A causa é melhor, que o efeito na boa filosofia,e assim é vossa energiamenor, que o vosso sujeito: logo se no humano peito não há alcançar o primor nas obras de tal autor,mal a causa alcançarão, pois o pregar do sermão É próprio do Pregador.Se louvo vossa alta idéia, sou culpado em me atrever, e sou culpado em meter, a fouce em seara alheia:nesta empresa, em que receia entrar o engenho major,entra o néscio sem pavor, porque a louca valentiadá ao néscio a ousadia,E a mim me dá mais temor.Ou cobarde, ou atrevido, ou ousado, ou não ousado hei de dizer empenhado, o que calava entendido: um amigo a vós rendido pede a vossas orações as minhas aprovações,e eu calando lhe obedeço,porque fique em maior preçoO Pregador, que os sermões. O MESMO AMIGO PEDIU AO POETA EM OUTRA OCASIÃO LHE GLOSASSE ESTE MOTE, CUJA MATÉRIA FOI HAVER TRIUNFADO O DITO FR. TOMAS DE CERTA OPOSIÇÃO CAPITULAR. MOTE Nuvens, que em oposição o sol querem desluzir,seus raios sabem sentirpor ser seu cuidado em vão.No Céu pardo de Francisco pardo à força de nublados há vapores humilhados,e soberbos com seu risco:o soberbo ao sol ariscose põe, e o humilhado não,e o sol menos queima entãoas nuvens, que chegar vê em acatamentos, queNuvens, que em oposição.As nuvens, que se lhe opõem com tão néscio atrevimento, o sol de um raio violentoqueima, abrasa, e descompõe:tudo o mais o sol dispõepare o manter, e cobrir criar, e reproduzir,e com razão não tem féco’as nuvens ingratas, que O sol querem desluzir.O sol por sua altivez, e nativo luzimentonão recebe abatimentoe abatê-lo é louca empresa: quando se atreve a vileza do vapor, que o vai seguirna nuvem, que o quer cobrir,se a subir não tem desmaios, ao resistir dos seus raios Seus raios sabem sentir.Sentem com tanto pesar, que têm por melhor partido não haver ao sol subido que subir para baixar: era força escarmentar na queda de Faetão, e na Icária perdição,que estes outros se arruinaram, quando ao sol subir cuidaram, Por ser seu cuidado em vão. AO SOBREDITO RELIGIOSO DESDENHANDO CRITICO DE HAVER GONÇALO RAVASCO, E ALBUQUERQUE NA PRESENÇA DE SUA FREIRA VOMITADO HUMAS NÁUSEAS, QUE LOGO COBRIU COM O CHAPÉU. Quem vos mete, Fr. Tomás, em julgar as mãos de amor, falando de um amadorque pode dar-vos seis e ás?Sendo vós disso incapaz, quem vos mete, Fr. Franquia,julgar, se foi policiao vômito, que arrotastes,se quando vós o julgastes, vomitastes uma asnia:Sabeis, por que vomitou aquele amante em jejum?lembrou-lhe o vosso budum,e a lembrança o enjoou; e porque considerou,que o tal budum vomitado era um fedor refinado,por não ver poluto um céu, o cobriu com seu chapéu,e em cobri-lo o fez honrado.Vós sois um pantufo em zancos, mais oco do que um tonel, e se estudais no burel,entendereis de tamancos: que as ações dos homens brancos, tão brancos como Furão,não as julga um maganãocriado em um oratório, julgador de refeitório,que dá o nosso Guardião.O que sabeis, Frei Garrafa, é a traça, e a maneira,com que estafais uma Freira, dizendo, que vos estafa:vós saís com a manga gafa do palangana, e tigelad'ovos moles com canela, e tão mal correspondeis, que esse tempo, que a comeis, são as têmporas para ela.Item sabeis tresladar falto de próprios conselhosde trezentos sermões velhos um sermão para pregar:e como entre o pontear, e cirgir obras alheiasse enxergam vossas idéias, mostrais pregando de falso,que sendo um Frade descalço,andais pregando de meias.E pois vossa Reverência quis ser julgador de nora,tenha paciência, que agora se lhe tira a residência:e inda que a minha clemência se há com dissimulação, livre-se na relaçãodos cargos, em que é culpado ser glutão como um capado,como um bode fodinchão. A CERTO FRADE NA VILA DE SAM FRANCISCO, A QUEM UMA MOÇA FINGINDO-SE AGRADECIDA À SEUS REPETIDOS GALANTEIOS, LHE MANDOU EM SIMULAÇÕES DE DOCE UMA PANELA DE MERDA. Reverendo Frei Antônio se vos der venérea fome,praza a Deus, que Deus vos tome, como vos toma o demônio:uma purga de antimôniodevia a moça tomar,quando houve de vos mandarum mimo, em que dá a entender, que já vos ama, e vos quer tanto, como o seu cagar.Fostes-vos mui de lampeiro vós, e os amigos de cela ao miolo da panela,e achastes um camareiro:metestes a mão primeiro,de que vos desenganásseis,e foi bem feito, que achásseis,cagalhões, que então sentistes, porque aquilo, que não vistes, quis o demo, que cheirásseis.A hora foi temerária, o caso tremendo, e atroz, e essa merda para vósse não serve, é necessária:se a peça é mui ordinária, eu de vós não tenho dó: e se não dizei-me: é pómandar-vos a ponto cru a Moça prendas do cu,que tão vizinho é do có?Se vos mandara primeiro o mijo num panelão,não ficáreis vós entãomui longe do mijadeiro:mas a um Frade malhadeiro sem correia, nem lacerda,que não sente a sua perda, seu descrédito, ou desar,que havia a Moça mandar,senão merda com mais merda?Dos cagalhões afamados diz esta plebe inimiga,que eram de ouro de má liganão dobrões, porém dobrados: aos Fradinhos esfamiados,que abrindo a panela estão, daí por cabeça um dobrão, e o mais mandai-o fechar;que por isso, e por guardar, manhã serei guardião.Se os cagalhões são tão duros, tão gordos, tão bem dispostos, é, porque hoje foram postos, e ainda estão mal maduros:que na enxurrada dos taisé de crer, que abrandem mais, porque a Moça cristãmentenão quer, que quebreis um dente, mas deseja, que os comais. O CERTO FRADE QUE GALANTEANDO DUAS SENHORAS NO CONVENTO DE ODIVELAS, LHES ENTREGOU HABITO, E MENORES PARA UM FINGIDO ENTREMEZ, E CONHECENDO O CHASCO, EM ALTA NOITE DEU EM CANTAR O MISERERE, BORRANDO, E OURINANDO TODO O PALRATÓRIO, PELO QUE A ABADESSA LHE DEU OS SEUS HÁBITOS, E SUA LANTERNA PARA SE RETIRAR À LISBOA. Reverendo Frei Carqueja, quentárida com cordão, magano da religião,e mariola da Igreja:Frei Sarna, ou Frei Bertoeja,Frei Pirtigo, que o centeio moes, e não dás receio,Frei Burro de Lançamento, pois que sendo um Frei Jumento, és um jumento sem freio.Tu, que nas pardas cavernas vives de um grosso saial, és carvoeiro infernal,pois andas com saco em pernas:lembram-te aquelas fraternas, que levaste a teu pesar, quando a Prelada Bivarpor culpa, que te cavou, de dia te desfradoupara à noite te expulsar.Pela dentada, que Adão deu no vedado fruteiro,de folhas fez um cueiro, e cobriu seu cordavão:a ti o querer ser glutãode outra maçã reservada, ao vento te pôs a ossada, mas com diferença muita, que se nu te pôs a fruta,tu não lhe deste a dentada.De José se diz cad'hora, que o fez um seno de chapa deixar pela honra a capanas mãos da amante senhora: tu na mão, que te namora, por honra, e por pundonor deixas hábito, e menor,mas com desigual partido, que José de acometido, e tu de acometedor.Desfradado em conclusão te vistes em couro puro, como vinho bem maduro, sendo, que és um cascarrão:era pelo alto serão,quando a gente às adivinhasviu entre queixas mesquinhas na varanda um Frade andeiro saído do Limoeiroa berrar pelas casinhas.Como Galeno na praça apareceste ao luarpobre, roubado do mar,que era ver-te um mar de graça:quando um pasma, e outro embaça; não me tenham por visão,frade sou inda em cueiros,tornei-me aos anos primeiros, e Bivar foi meu Jordão.Porque luz se te não manda, tu por não dar num ferrolho,dizem, que abriste o teu olho, que é cancela, que tresanda: chovias por uma banda, e por outra trovejavas,viva tempestade andavas,porque à comédia assistias, que era tramóia fingias,e na verdade o passavas.Ninguém há, que vitupere aquele lanço estupendo,quando o teu pecado vendo tomaste o teu miserere: mas é bem, que me exaspere de ver, que todo o sandeu, que nos tratos se meteude Freiras, logo confessa,que isso lhe deu na cabeça, e a ti só no cu te deu.Dessa hora temerária ficou a grade de guisa,que se até ali foi precisa,desde então foi necessária: tu andaste como alimária,mas isso não te desdoura, porque fiado na coura da brutesca fradariaestercaste estrebaria, o que gostas manjedoura.Que és frade de habilidade, dás grandíssima suspeita, pois deixas câmara feita, o que foi té agora grade: tu és um corrente Fradenos lances de amor, e brio, pois achou teu desvarioser melhor, e mais barato, do que dar o teu retrato, pôr na grade o teu feitio.Corrido enfim te ausentaste, mas obrando ao regatão, pois levaste um lampião pela cera, que deixaste: sujamente te vingasteFrei Azar, ou Frei Piorno, e estás com grande sojorno, e posto muito de perna,sem veres, que essa lanternate deram, por dar-te um corno.O com que perco o sentido, é ver, que em tão sujo tope levando a Freira o xarope tu ficaste o escorrido: na câmara estás provido e de ruibarbo com capa,mas lembro-te Frei Jalapa, que por cagar no sagrado o cu tens excomungado,se não recorres ao Papa.Muito em teus negócios medras com furor, que te destampa,pois sendo um louco de trampa, te tem por louco de pedras: é muito, que não desmedras, vendo-te trapo, e farrapo,antes co’a Freira no papo, como no sentido a tinhas,parece, que a vê-la vinhas,pois vinhas com todo o trapo.Tu és magano de lampa,Bivar é Freira travessa, a Freira pregou-te a peça,mas tu armaste-lhe a trampa: se o teu cagar nunca escampa, nunca estie o seu capricho, e pois tê pregou, Frei Mixo, chame-se por todo o mapa ela travessa de chapa,e tu magano de esguicho. A CERTO FRADE, QUE QUERENDO EMBARCAR-SE PARA FORA DA CIDADE, FURTOU UM CABRITO, O QUAL SENDO CONHECIDO DA MAI PELO BERRO O FOI BUSCAR DENTRO DO BARCO, E COMO NÃO TEVE EFEITO O DITO ROUBO, TRATOU LOGO DE FURTAR OUTRO, E O LEVOU ASSADO. De fornicário em ladrão se converteu Frei Foderibus o lascivo em mulieribus, o mui alto fodinchão: foi o caso, que um verão tratando o Frade malditode ir da cidade ao distrito, querendo a cabra levar, para mais a assegurar,embarcou logo o cabrito.Mas a cabra esquiva, e crua a outro pasto já inclinada não quis fazer a jornada,nem que a faça cousa sua:balou uma, e outra ruacom tal dor, e tal paixão,que respondendo o mamão alcançou todo o distritonas respostas do cabrito o codilho do cabrão.Estava ele muito altivo com seu jogo bem assaz,porém, por roubar sem ásperdeu bolo, cabra, e chibo:porque sem pôr pé no estrivosaltou na barca do Alparca,e dizendo desembarca saiu co filho a correr,porque então não quis meter com tal cabrão pé em barca.O Frade ficou num berro, porque temia o malditose não levasse o cabrito,de achar, que lhe pegue um perro: e por não cair nesse erronum rebanho em boa féoutro, a quem o Frei Caziqui, quando ele dizia mihi, ele respondia mé.Do mé desaparecido foi logo o dono avisado,que o Frade lhe havia achadoantes dele o haver perdido:e sendo o sítio corrido,se achou, que a modo de pá num forno o cabrito está,que o Frade é des