Por Machado de Assis (1878)
Machado de Assis (1839–1908), um dos maiores nomes da literatura brasileira, publicou Conversão de um avaro em 1878, no Jornal das Famílias, no Rio de Janeiro. O conto aborda com ironia e sutileza a transformação moral de um homem dominado pela avareza, revelando a crítica social e psicológica característica do autor. É um convite à reflexão sobre o egoísmo e o valor das relações humanas.
I
Os vícios equilibram-se muita vez; outras vezes neutralizam-se ou vence um a outro... Há pecados que derrubam pecados, ou, pelo menos, quebram-lhes as pernas. Gil Gomes tinha uma casa de colchões em uma das ruas do bairro dos Cajueiros. Era um homem de cinqüenta e dois anos, cheio de corpo, vermelho e avaro. Ganhara um bom pecúlio a vender colchões e a não usar nenhum. Note-se que não era homem sórdido, pessoalmente desasseado; não. Usava camisa lavada, calça e rodaque lavados. Mas era a sua maior despesa. A cama era um velho sofá de palhinha; a mobília eram duas cadeiras, uma delas quebrada, uma mesa de pinho e um baú. A loja não era grande nem pequena, mas regular, cheia de mercadoria. Tinha dois operários. Era mercador de colchões esse homem, desde 1827. Esta história passa-se em 1849. Nesse ano adoeceu Gil Gomes e um amigo, que morava no Engenho Velho, levou-o para casa, pelo motivo ou pretexto de que na cidade não poderia curar-se bem. — Nada, meu amigo, disse ele a primeira vez que o outro lhe falou nisso, nada. Isto não é nada.
— É sim; pode ser, ao menos.
— Qual! Uma febrícula; vou tomar um chá.
O caso não era de chá; mas Gil Gomes evitava o médico e a botica até a última. O amigo deu-lhe a entender que não pensasse nessas despesas, e Gil Gomes, sem compreender logo que o amigo por força pensaria em alguma compensação, admirou esse rasgo de fraternidade. Não disse sim, nem não; levantou os ombros, olhou para o ar, enquanto o outro repetia:
— Vamos, vamos!
— Vá lá, disse ele. Talvez o melhor remédio seja a companhia de um bom amigo. — Decerto!
— Porque a moléstia é nada; é uma febrícula...
— Das febrículas nascem os febrões disse sentenciosamente o amigo de Gil Gomes. Esse amigo chamava-se Borges; era um resto de sucessivos naufrágios. Tinha sido várias coisas, e ultimamente preparava-se a ser milionário. Contudo estava longe; tinha apenas dois escravos boçais comprados entre os últimos chegados por contrabando. Era, por ora, toda a riqueza, não podendo incluir-se nela a esposa que era um tigre de ferocidade, nem a filha, que parecia ter o juízo a juros. Mas este Borges vivia das melhores esperanças. Ganhava alguma coisa em não sei que agências particulares; e nos intervalos cuidava de um invento, que ele dizia destinado a revolucionar o mundo industrial. Ninguém sabia o que fosse, nem que destino tivera; mas ele afirmava que era grande coisa, útilíssima, nova e surpreendente.
Gil Gomes e José Borges chegaram à casa deste, onde ao primeiro foi dado um quarto de antemão arranjado. Gomes achou-se bem no aposento, posto lhe inspirasse ele o maior desprezo ao amigo.
— Que desperdício! quanta coisa inútil! Nunca há de ser nada o pateta! dizia ele entre dentes.
A doença de Gomes, atalhada a tempo, curou-se em poucos dias. A mulher e a filha de Borges tratavam dele com o carinho que permitia o gênio feroz de uma e a leviandade de outra. A sra. D. Ana acordava às cinco horas da manhã e berrava até às dez da noite. Poupou ao hóspede esse costume durante a doença; mas, a palavra contida manifestava se em repelões à filha, ao marido e às escravas. A filha chamava-se Mafalda; era uma moça pequena, vulgar, supersticiosa, que só se penteava às duas horas da tarde e andava sem meias toda a manhã.
Gil Gomes deu-se bem com a família.
O amigo não cogitava de outra coisa mais que de o fazer feliz, e lançou mão de bons cobres para tratá-lo como faria a um irmão, a um pai, a um filho.
— Dás-te bem? dizia-lhe no fim de quatro dias.
— Não me dou mal.
— Pior! isso é fugir à pergunta.
— Dou-me perfeitamente; e naturalmente incomodo-te...
— Oh! não...
— Decerto; um doente é sempre um peso demais.
José Borges protestou com toda a energia contra essa suposição gratuita do amigo e acabou proferindo um discurso acerca dos deveres de amizade, que Gil Gomes ouviu enfastiado e penalizado.
Na véspera de voltar para a sua loja de colchões, Gil Gomes travou conhecimento com uma nova pessoa da família: a viúva Soares. A viúva Soares era prima de José Borges. Tinha vinte e sete anos, e era, na frase do primo, um pedaço de mulher. Efetivamente era vistosa, forte, de ombros largos, braços grossos e redondos. Viúva desde os vinte e dois, conservava um resto de luto, antes como um realce que outra coisa. Gostava de véu porque um poetastro lhe dissera em versos de todos os tamanhos que seus olhos, velados, eram como estrelas através de nuvens finas, idéia que a sra. D. Rufina Soares achou engenhosa e novíssima. O poeta recebeu em paga um olhar. Na verdade, os olhos eram bonitos, grandes, pretos, misteriosos. Gil Gomes, quando os viu ficou embasbacado; foi talvez o remédio que melhor o curou.
— Essa tua prima, na verdade...
— Um pedaço de mulher!
— Pedaço! é uma inteira, são duas mulheres, são trinta e cinco mulheres! — Que entusiasmo! observou José Borges.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Conversão de um avaro. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1878.