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#Contos#Literatura Brasileira

Cantiga Velha

Por Machado de Assis (1883)

Machado de Assis (1839–1908), maior nome do Realismo brasileiro, publicou Cantiga Velha em 1883, no periódico A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, no Rio de Janeiro. O conto reflete sobre a memória, o amor e o tempo, misturando recordações sentimentais e observações sociais em um tom melancólico e reflexivo, característico da maturidade literária do autor.

Conversávamos de cantigas populares. Entre o jantar e o chá, quatro pessoas tão somente, longe do voltarete e da polca, confessem que era uma boa e rara fortuna. Polca e voltarete são dous organismos vivos que estão destruindo a nossa alma; é indispensável que nos vacinem com a espadilha e duas ou três oitavas do Caia no beco ou qualquer outro título da mesma farinha. Éramos quatro e tínhamos a mesma idade. Eu e mais dous pouco sabíamos da matéria; tão-somente algumas reminiscências da infância ou da adolescência. O quarto era grande ledor de tais estudos, e não só possuía alguma cousa do nosso cancioneiro, como do de outras partes. Confessem que era um regalo de príncipes.

Esquecia-me dizer que o jantar fora copioso; notícia indispensável à narração, porque um homem antes de jantar não é o mesmo que depois do jantar, e pode-se dizer que a discrição é muitas vezes um momento gastronômico. Homem haverá reservado durante a sopa, que à sobremesa põe o coração no prato, e dá-o em fatias aos convivas. Toda a questão é que o jantar seja abundante, esquisito e fino, os vinhos frios e quentes, de mistura, e uma boa xícara de café por cima, e para os que fumam um havana de cruzado. Reconhecido que isto é uma lei universal, admiremos os diplomatas que, na vida contínua de jantares, sabem guardar consigo os segredos dos governos. Evidentemente são organizações superiores.

O dono da casa dera-nos um bom jantar. Fomos os quatro, no fim para junto de uma janela, que abria para um dos lados da chácara. Posto estivéssemos no verão, corria um ventozinho fresco, e a temperatura parecia impregnada das últimas águas. Na sala de frente, dançava-se a polca; noutra sala jogava-se o voltarete. Nós, como digo, falávamos de cantigas populares.

— Vou dar-lhes uma das mais galantes estrofes que tenho ouvido, disse um de nós. Morava na Rua da Carioca, e um dia de manhã ouvi do lado dos fundos esta quadrinha: Coitadinho, como é tolo

Em cuidar que eu o adoro

Por me ver andar chorando...

Sabe Deus por quem eu choro!

O ledor de cancioneiros pegou da quadra para esmerilhá-la com certa pontinha de pedantismo, mas outro ouvinte, o dr. Veríssimo, pareceu inquieto; perguntou ao primeiro o número da casa em que morara; ele respondeu rindo que uma tal pergunta só se podia explicar da parte de um governo tirânico; os números das casas deixam-se nas casas. Como recordá-los alguns anos depois? Podia dizer-lhe em que ponto da rua ficava a casa; era perto do Largo da Carioca, à esquerda de quem desce, e foi nos anos de 1864 e 1865.

— Isso mesmo, disse ele.

— Isso mesmo, quê?

— Nunca viu a pessoa que cantava?

— Nunca. Ouvi dizer que era uma costureira, mas não indaguei mais nada. Depois, ainda ouvi cantar pela mesma voz a mesma quadrinha. Creio que não sabia outra. A repetição fê-la monótona, e...

— Se soubessem que essa quadrinha era comigo! disse ele sacudindo a cinza do charuto.

E como lhe perguntássemos se ele era o aludido do último verso — Sabe Deus por quem eu choro, respondeu-nos que não. Eu sou o tolo do princípio da quadra. A diferença é que não cuidava, como na trova, que ela me adorasse; sabia bem que não. Menos essa circunstância, a quadra é comigo. Pode ser que fosse outra pessoa que cantasse; mas o tempo, o lugar da rua, a qualidade de costureira, tudo combina.

— Vamos ver se combina, disse o ex-morador da Rua da Carioca piscando-me o olho. Chamava-se Luísa?

— Não; chamava-se Henriqueta.

— Alta?

— Alta. Conheceu-a?

— Não; mas então essa Henriqueta era alguma princesa incógnita, que... — Era uma costureira, retorquiu o Veríssimo. Nesse tempo era eu estudante. Tinha chegado do Sul poucos meses antes. Pouco depois de chegado... Olhem, vou contar-lhes uma cousa muito particular. Minha mulher sabe do caso, contei-lhe tudo, menos que a tal Henriqueta foi a maior paixão da minha vida... Mas foi; digo-lhe que foi uma grande paixão. A cousa passou-se assim...

CAPÍTULO II

— A cousa passou-se assim. Vim do Sul, e fui alojar-me em casa de uma viúva Beltrão. O marido desta senhora perecera na guerra contra o Rosas; ela vivia do meio soldo e de algumas costuras. Estando no Sul, em 1850, deu-se muito com a minha família; foi por isso, que minha mãe não quis que eu viesse para outra casa. Tinha medo do Rio de Janeiro; entendia que a viúva Beltrão desempenharia o seu papel de mãe, e recomendou me a ela.

D. Cora recebeu-me um pouco acanhada. Creio que era por causa das duas filhas que tinha, moças de dezesseis e dezoito anos, e pela margem que isto podia dar à maledicência. Talvez fosse também a pobreza da casa. Eu supus que a razão era tão somente a segunda, e tratei de lhe tirar escrúpulos mostrando-me alegre e satisfeito. Ajustamos a mesada. Deu-me um quarto, separado, no quintal. A casa era em Mata porcos. Eu palmilhava, desde casa até à Escola de Medicina, sem fadiga, voltando à tarde, tão fresco como de manhã.

(continua...)

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