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#Peças de teatro#Literatura Brasileira

As Forças Caudinas

Por Machado de Assis (1877)

Machado de Assis (1839–1908), mestre do realismo brasileiro, escreveu As forças caudinas em 1877. A comédia, ambientada em Petrópolis, satiriza o amor e o casamento, expondo a ironia e a psicologia das relações humanas. A peça reflete o humor fino e o olhar crítico de Machado sobre as convenções sociais e afetivas de sua época.

Comédia em dois atos

PERSONAGENS

Tito

Ernesto Seabra

Aleixo Cupidov, Coronel Russo

Emília Soares, Viúva

Margarida Seabra

Um Correio

A cena passa-se em Petrópolis - Atualidade.

ATO PRIMEIRO

(Um jardim: mesa, cadeiras de ferro. A casa a um lado.)

Cena I

SEABRA (assentado a um lado da mesa, com um livro aberto); MARGARIDA (do outro lado)

SEABRA

Queres que paremos aqui?

MARGARIDA

Como quiseres.

SEABRA

(fechando o livro)

É melhor. As coisas boas não se gozam de uma assentada. Guardemos um bocado para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idílio escrito para o idílio vivo. Deixa me olhar para ti.

MARGARIDA

Jesus! Parece que começamos a lua-de-mel.

SEABRA

Parece e é. E se o casamento não fosse eternamente isto o que poderia ser? A ligação de duas existências para meditar discretamente na melhor maneira de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor de Deus! Eu penso que o casamento deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu?

MARGARIDA

Sinto...

SEABRA

Sentes, é quanto basta.

MARGARIDA

Mas que as mulheres sintam é natural; os homens...

SEABRA

Os homens são homens.

MARGARIDA

O que nas mulheres é sensibilidade, nos homens é pieguice: desde pequena me dizem isto.

SEABRA

Enganam-te desde pequena.

MARGARIDA

Antes isso!

SEABRA

É a verdade. E desconfia sempre dos que mais falam, homens ou mulheres. Tens perto um exemplo. A Emília faz um grande cavalo de batalha da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos.

MARGARIDA

Mas nela é brincadeira.

SEABRA

Pois sim. O que não é brincadeira é que os cinco meses do nosso casamento parecem me cinco minutos...

MARGARIDA

Cinco meses!

SEABRA

Como foge o tempo!

MARGARIDA

Dirás sempre o mesmo?

SEABRA

Duvidas?

MARGARIDA

Receio. É tão bom ser feliz!

SEABRA

Sê-lo-ás sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu.

TITO

(ao fundo)

O que é que não entendes?

Cena II

MARGARIDA, SEABRA, TITO

SEABRA

Quem é? (levanta-se e vai ao fundo) Ah! é o Tito! Entra! Entra! (abre a cancela) Ah! (abraçam-se) Como estás? Acho-te mais gordo! Anda cumprimentar minha mulher. Margarida, aqui está o Tito!

TITO

Minha senhora... (a Seabra) Dás licença? (a Margarida) Quem vem de longe quer abraços. (dá-lhe um abraço) Ah! aproveito a ocasião para dar-lhes os parabéns.

SEABRA

Recebeste a nossa carta de participação?

TITO

Em Valparaíso.

SEABRA

Anda sentar-te e conta-me a tua viagem.

TITO

Isso é longo. O que te posso contar é que desembarquei ontem no Rio. Tratei de indagar a tua morada. Disseram-me que estavas temporariamente em Petrópolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha e aqui estou. Eu já suspeitava que com o teu espírito de poeta irias esconder a tua felicidade em algum recanto do mundo. Com efeito, isto é verdadeiramente uma nesga do paraíso. Jardim, caramanchões, unia casa leve e elegante, um livro... (abre o livro) Bravo! Marília de Dirceu... É completo? Tityre, tu patulae... Caio no meio de um idílio. (a Margarida) Pastorinha, onde está o cajado? (Margarida ri às gargalhadas) Ri mesmo como uma pastorinha alegre. E tu, Teócrito, que fazes? Deixas correr os dias como as águas do Paraíba? Feliz criatura!

SEABRA

Sempre o mesmo!

TITO

O mesmo doido? (a Margarida) Acha que ele tem razão?

MARGARIDA

Acho, se o não ofendo...

TITO

Qual, ofender! Se eu até me honro com isso. Sou um doido inofensivo, isso é verdade. Mas é que realmente são felizes como poucos. Há quantos meses se casaram?

MARGARIDA

Cinco meses fazem domingo.

SEABRA

Disse há pouco que me pareciam cinco minutos.

TITO

Cinco meses, cinco minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os pusessem sobre uma grelha, como São Lourenço, cinco minutos eram cinco meses. E ainda se fala em tempo! Há lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Há meses para os infelizes e minutos para os venturosos!

SEABRA

Mas que ventura!

TITO

Completa, não? Imagino! Marido de um serafim nas graças e no coração... Ah! perdão, não reparei que estava aqui... mas não precisa corar!... Disto me hás de ouvir vinte vezes por dia! o que penso, digo. (a Seabra) Como não te hão de invejar os nossos amigos!

SEABRA

Isso não sei.

TITO

Pudera! Encafuado neste desvão do mundo de nada podes saber. E fazes bem. Isto de ser feliz à vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o princípio devo ir-me já embora...

SEABRA

Deixa-te disso: fica conosco.

MARGARIDA

Os verdadeiros amigos também são a felicidade.

TITO

(curvando-se)

Oh!...

SEABRA

É até bom que aprendas em nossa escola a ciência do casamento.

TITO

Para quê?

SEABRA

Para te casares.

TITO

Hum!

MARGARIDA

Não pretende?

SEABRA

Estás ainda o mesmo que em outro tempo?

TITO

O mesmíssimo.

MARGARIDA

Tem horror ao casamento?

TITO

Não tenho vocação. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se meta nisso que é perder o tempo e o sossego. Desde muito tempo estou convencido disto.

SEABRA

Ainda te não bateu a hora.

(continua...)

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