Letras+ | Letródromo | Letropédia | LiRA | PALCO | UnDF



Compartilhar Reportar
#Peças de teatro#Literatura Brasileira

Antes da Missa

Por Machado de Assis (1878)

Machado de Assis (1839–1908), mestre do realismo brasileiro, escreveu Antes da Missa em 1878. A peça em verso retrata, com fina ironia, o diálogo fútil e espirituoso de duas damas da elite carioca, revelando o cotidiano burguês e a crítica sutil aos costumes e à superficialidade das relações sociais no Rio de Janeiro do século XIX.

CONVERSA DE DUAS DAMAS

(D. LAURA entra com um livro de missa na mão; D. BEATRIZ vem recebê-la)

D. BEATRIZ

Ora esta! Pois tu, que és a mãe da preguiça,

Já tão cedo na rua! Aonde vais?

D. LAURA

Vou à missa:

A das onze, na Cruz. Pouco passa das dez;

Subi para puxar-te as orelhas. Tu és

A maior caloteira...

Espera; não acabes.

D. BEATRIZ

O teu baile, não é? Que queres tu? Bem sabes

Que o senhor meu marido, em teimando, acabou.

"Leva o vestido azul" -- "Não levo" --“Hás de ir”

[ --"Não vou".]

Vou, não vou; e a teimar deste modo, perdemos

Duas horas. Chorei! Que eu, em certos extremos,

Fico que não sei mais o que fazer de mim.

Chorei de raiva. Às dez, veio o tio Delfim;

Pregou-nos um sermão dos tais que ele costuma,

Ralhou muito, falou, falou, falou... Em suma,

(Terás tido também essas coisas por lá)

O arrufo terminou entre o biscoito e o chá.

D. LAURA

Mas a culpa foi tua.

D. BEATRIZ

Essa agora!

D. LAURA

O vestido

Azul É o azul-claro? aquele guarnecido

De franjas largas?

D. BEATRIZ

Esse.

D. LAURA

Acho um vestido bom.

D. BEATRIZ

Bom! Parece-te então que era muito do tom

Ir com ele, num mês, a dois bailes?

D. LAURA

Lá isso

É verdade.

D. BEATRIZ

Levei-o ao baile do Chamisso.

D. LAURA

Tens razão; na verdade, um vestido não é

Uma opa, uma farda, um carro, uma libré.

D. BEATRIZ

Que dúvida!

LAURA

Perdeste uma festa excelente.

D. BEATRIZ

Já me disseram isso

D. LAURA

Havia muita gente.

Muita moça bonita e muita animação.

D. BEATRIZ

Que pena! Anda, senta-te um bocadinho.

D. LAURA

Não;

Vou à missa.

D. BEATRIZ

Inda é cedo; anda contar-me a festa.

Para mim, que não fui, cabe-me ao menos esta

Consolação.

D. LAURA

(indo sentar-se)

Meu Deus! Faz calor!

D. BEATRIZ

Dá cá

O livro.

D. LAURA

Para quê? Ponho-o aqui no sofá.

D. BEATRIZ

Deixa ver. Tão bonito! E tão mimoso! Gosto

De um livro assim; o teu é muito lindo; aposto

Que custou alguns cem...

D. LAURA Cinqüenta francos.

D. BEATRIZ

Sim? Barato. És mais feliz

Do que eu. Mandei vir um, há tempos, de Bruxelas;

Custou caro, e trazia as folhas amarelas,

Umas letras sem graça, e uma tinta sem cor.

Foi comprado em Paris;

D. LAURA

Ah! Mas eu tenho ainda o meu fornecedor.

Ele é que me arranjou este chapéu. Sapatos,

Não me lembra de os ter tão bons e tão baratos.

E o vestido de baile? Um lindo gorgorão

Gris-Perle; era o melhor que lá estava.

D. BEATRIZ

Então,

Acabou tarde?

D. LAURA

Sim; à uma, foi a ceia;

E a dança terminou depois de três e meia.

Uma festa de truz. O Chico Valadão,

Já se sabe, foi quem regeu o cotilhão.

D. BEATRIZ

Apesar da Carmela?

Apesar da Carmela.

D. BEATRIZ

Esteve lá?

D. LAURA

Esteve; e digo: era a mais bela

Das solteiras. Vestir, não se soube vestir;

Tinha o corpinho curto, e mal feito, a sair

Pelo pescoço fora.

D. BEATRIZ

A Clara foi?

D. LAURA

Que Clara?

D. BEATRIZ

Vasconcelos.

D. LAURA

Não foi; a casa é muito cara.

E a despesa é enorme. Em compensação, foi

A sobrinha, a Garcez; essa (Deus me perdoe!)

Levava no pescoço umas pedras taludas,

Uns brilhantes...

D. BEATRIZ

Que tais?

D. LAURA

Oh! falsos como Judas!

Também, pelo que ganha o marido, não há

Que admirar. Lá esteve a Gertrudinha Sá;

Essa não era assim; tinha jóias de preço.

Ninguém foi com melhor e mais rico adereço.

Compra sempre fiado. Oh! aquela é a flor

Das viúvas.

D. BEATRIZ

Ouvi dizer que há um doutor. . .

D. LAURA

Que doutor?

D. BEATRIZ

Um Dr. Soares que suspira,

Ou suspirou por ela.

D. LAURA

Ora esse é um gira

Que pretende casar com quanta moça vê.

A Gertrudes! Aquela é fina como quê.

Não diz que sim, nem não; e o pobre do Soares,

Todo cheio de si, creio que bebe os ares

Por ela... Mas há outro.

D. BEATRIZ

Outro?

D. LAURA

isto fica aqui;

Há coisas que eu só digo e só confio a ti.

Não me quero meter em negócios estranhos.

Dizem que há um rapaz, que quando esteve a banhos,

No Flamengo, há um mês, ou dois meses, ou três,

Não sei bem; um rapaz... Ora, o Juca Valdez!

D. BEATRIZ

O Valdez!

D. LAURA

Junto dela, às vezes, conversava

A respeito do mar que ali espreguiçava,

E não sei se também a respeito do sol;

Não foi preciso mais; entrou logo no rol

Dos fiéis e ganhou (dizem), em poucos dias,

O primeiro lugar.

D. BEATRIZ

E casam-se?

D. LAURA

A Farias

Diz que sim; diz até que eles se casarão

Na véspera de Santo Antônio ou São João.

D. BEATRIZ

A Farias foi lá a tua casa?

D. LAURA

Foi;

Valsou como um pião e comeu como um boi.

D. BEATRIZ

Come muito, então?

D. LAURA

Muito, enormemente; come

Que, só vê-la comer, tira aos outros a fome.

Sentou-se ao pé de mim. Olha, imagina tu

Que varreu, num minuto, um prato de peru,

Quatro croquetes, dois pastéis de ostras, fiambre;

O cônsul espanhol dizia "Ah, Dios quê hambre!"

Mal me pude conter. A Carmosina Vaz,

Que a detesta, contou o dito a um rapaz.

Imagina se foi repetido; imagina.

D. BEATRIZ

Não aprovo o que fez a outra.

D. LAURA

A Carmosina?

D. BEATRIZ

(continua...)

123
Baixar texto completo (.txt)

← Voltar← AnteriorPróximo →