Por Machado de Assis (1881)
Machado de Assis (1839–1908), um dos principais nomes da literatura brasileira, publicou "A Mulher Pálida" em 1881, na revista A Estação, no Rio de Janeiro. O conto retrata, com fina ironia, o amor idealizado e a obsessão romântica, expondo as contradições humanas entre desejo, vaidade e ilusão — temas recorrentes na obra machadiana.
I
Rangeu enfim o último degrau da escada ao peso do vasto corpo do major Bento. O major deteve-se um minuto, respirou à larga, como se acabasse de subir, não a escada do sobrinho, mas a de Jacó, e enfiou pelo corredor adiante.
A casa era na Rua da Misericórdia, uma casa de sobrado cujo locatário sublocara três aposentos a estudantes. O aposento de Máximo era ao fundo, à esquerda, perto de uma janela que dava para a cozinha de uma casa da rua D. Manuel. Triste lugar, triste aposento, e tristíssimo habitante, a julgá-lo pelo rosto com que apareceu às pancadinhas do major. Este bateu, com efeito, e bateu duas vezes, sem impaciência nem sofreguidão. Logo que bateu a segunda vez, ouviu estalar dentro uma cama, e logo um ruído de chinelas ao chão, depois um silêncio curto, enfim, moveu-se a chave e abriu-se a porta. — Quem é? — ia dizendo a pessoa que abrira. E logo: — é o tio Bento. A pessoa era um rapaz de vinte anos, magro, um pouco amarelo, não alto, nem elegante. Tinha os cabelos despenteados, vestia um chambre velho de ramagens, que foram vistosas no seu tempo, calçava umas chinelas de tapete; tudo asseado e tudo pobre. O aposento condizia com o habitante: era o alinho na miséria. Uma cama, uma pequena mesa, três cadeiras, um lavatório, alguns livros, dois baús, e pouco mais. — Viva o sr. estudante, disse o major sentando-se na cadeira que o rapaz lhe oferecera. — Vosmecê por aqui, é novidade, disse Máximo. Vem a passeio ou negócio? — Nem negócio nem passeio. Venho...
Hesitou; Máximo reparou que ele trazia uma polegada de fumo no chapéu de palha, um grande chapéu da roça de onde era o major Bento. O major, como o sobrinho, era de Iguaçu. Reparou nisso, e perguntou assustado se morrera alguma pessoa da família. — Descanse, disse o major, não morreu nenhum parente de sangue. Morreu teu padrinho.
O golpe foi leve. O padrinho de Máximo era um fazendeiro rico e avaro, que nunca jamais dera ao sobrinho um só presente, salvo um cacho de bananas, e ainda assim, porque ele se achava presente na ocasião de chegarem os carros. Tristemente avaro. Sobre avaro, misantropo; vivia consigo, sem parentes — nem amigos, nem eleições, nem festas, nem coisa nenhuma. Máximo não sentiu muita comoção à noticia do óbito. Chegou a proferir uma palavra de desdém.
— Vá feito, disse ele, no fim de algum tempo de silêncio, a terra lhe seja leve, como a bolsa que me deixou.
— Ingrato! bradou o major. Fez-te seu herdeiro universal.
O major proferiu estas palavras estendendo os braços para amparar o sobrinho, na queda que lhe daria a comoção; mas, a seu pesar, viu o sobrinho alegre, ou pouco menos triste do que antes, mas sem nenhum delírio. Teve um sobressalto, é certo, e não disfarçou a satisfação da noticia. Pudera! Uma herança de seiscentos contos, pelo menos. Mas daí à vertigem, ao estontear que o major previa, a distância era enorme. Máximo puxou de uma cadeira e sentou-se defronte do tio.
— Não me diga isso! Deveras herdeiro?
— Vim de propósito dar-te a notícia. Causou espanto a muita gente; o Morais Bicudo, que fez tudo para empalmar-lhe a herança, ficou com uma cara de palmo e meio. Dizia-se muita coisa; uns que a fortuna fìcava para o Morais, outros que para o vigário, etc. Até se disse que uma das escravas seria a herdeira da maior parte. Histórias! Morreu o homem, abre-se o testamento, e lê-se a declaração de que você é o herdeiro universal. Máximo ouviu contente. No mais recôndito da consciência dele insinuava-se esta reflexão — que a morte do coronel era uma coisa deliciosa, e que nenhuma outra notícia lhe podia ir mais direta e profunda ao coração.
— Vim dizer isto a você, continuou o major, e trazer um recado de tua mãe. — Que é?
— Simplesmente saber se você quer continuar a estudar ou se prefere tomar conta da fazenda.
— Que lhe parece?
— A mim nada; você é que decide.
Máximo refletiu um instante.
— Em todo o caso, não é sangria desatada, disse ele; tenho tempo de escolher. — Não, porque se você quiser estudar dá-me procuração, e não precisa sair daqui. Agora, se...
— Vosmecê volta hoje mesmo?
— Não, volto sábado.
— Pois amanhã resolveremos isto.
Levantou-se, atirou a cadeira ao lado, bradando que enfim ia tirar o pé do lodo; confessou que o padrinho era um bom homem, apesar de seco e misantropo, e a prova... — Vivam os defuntos! concluiu o estudante.
Foi a um pequeno espelho, mirou-se, consertou os cabelos com as mãos; depois deteve se algum tempo a olhar o soalho. O tom sombrio do rosto dominou logo a alegria da ocasião; e se o major fosse homem sagaz, poderia perceber-lhe nos lábios uma leve expressão de amargura. Mas o major nem era sagaz, nem olhava para ele; olhava para o fumo do chapéu, e consertava-o; depois despediu-se do estudante.
— Não, disse este; vamos jantar juntos.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A mulher pálida. A Estação, Rio de Janeiro, 1881.