Por Machado de Assis (1887)
Machado de Assis (1839–1908) explora em A Melhor das Noivas as ilusões e disputas humanas em torno do amor e do interesse. O conto foi publicado originalmente em 1877, no Jornal das Famílias, periódico voltado ao público feminino da Corte. A narrativa combina ironia e crítica social, marcas inconfundíveis do estilo machadiano.
O sorriso dos velhos é porventura uma das coisas mais adoráveis do mundo. Não o era porém o de João Barbosa no último dia de setembro de 1868, riso alvar e grotesco, riso sem pureza nem dignidade; riso de homem de setenta e três anos que pensa em contrair segundas núpcias. Nisso pensava aquele velho, aliás honesto e bom; disso vivia desde algumas horas antes. Eram oito da noite: ele entrara em casa com o mencionado riso nos lábios.
— Muito alegre vem hoje o senhor!
— Sim?
— Viu passarinho verde?
— Verde não, D. Joana, mas branco, um branco de leite, puro e de encher o olho, como os quitutes que você me manda preparar às vezes.
— Querem ver que é...
— Isso mesmo, D. Joana.
— Isso quê?
João Barbosa não respondeu; lambeu os beiços, piscou os olhos, e deixou-se cair no canapé. A luz do candelabro bateu-lhe em cheio no rosto, que parecia uma mistura de Saturno e sátiro. João Barbosa desabotoou a sobrecasaca e deu saída a um suspiro, aparentemente o último que lhe ficara de outros tempos. Era triste vê-lo; era cruel adivinhá-lo. D. Joana não o adivinhou.
Esta D. Joana era uma senhora de quarenta e oito anos, rija e maciça, que durante dez anos dava ao mundo o espetáculo de um grande desprezo da opinião. Contratada para tomar conta da casa de João Barbosa, logo depois de enviuvar, entrou ali em luta com os parentes do velho, que eram dois, os quais fizeram tudo para excluí-la sem conseguirem nada. Os dois parentes, os vizinhos, finalmente os conhecidos criam firmemente que D. Joana aceitara de João Barbosa uma posição equívoca, embora lucrativa. Era calúnia; D. Joana sabia o que diziam dela, e não arredava pé. A razão era que, posto não transpusesse uma linha das fronteiras estabelecidas no contrato verbal que precedeu a sua entrada ali, contudo ela esperava ser contemplada nas últimas disposições de João Barbosa; e valia a pena, em seu entender, afrontar os ditos do mundo para receber no fim de alguns anos uma dúzia de apólices ou uma casa ou alguma coisa equivalente. Verdade é que o legado, se fosse de certa consistência, podia confirmar as suspeitas da sociedade; D. Joana, entretanto, professava a máxima extremamente salutar de que o essencial é andar-se quente, embora os outros se riam.
Riam-se os outros, mas de cólera, e alguns de inveja. João Barbosa, antigo magistrado, herdara de seu pai e de um tio quatro ou cinco fazendas, que transferiu a outros, convertendo seus cabedais em títulos do governo e vários prédios. Fê-lo logo depois de viúvo, e passou a residir na corte definitivamente. Perdendo um filho que tinha, achou-se quase só; quase, porque ainda lhe restavam dois sobrinhos, que o rodeavam de muitas e variadas atenções; João Barbosa suspeitava que os dois sobrinhos estimavam ainda mais as apólices do que a ele e recusou todas as ofertas que lhe faziam para aceitar-lhes casa. Um dia lembrou-se de inserir nos jornais um anúncio declarando precisar de uma senhora de certa idade, morigerada, que quisesse tomar conta da casa de um homem viúvo. D. Joana tinha apenas trinta e oito anos; confessou-lhe quarenta e quatro, e tomou posse do cargo. Os sobrinhos, quando souberam disto, apresentaram a João Barbosa toda a sorte de considerações que podem nascer no cérebro de herdeiros em ocasião de perigo. O velho ouviu cerca de oito a dez tomos de tais considerações, mas ateve-se à primeira idéia, e os sobrinhos não tiveram outro remédio mais que aceitar a situação. D. Joana nunca se atrevera a desejar outra coisa mais que ser contemplada no testamento de João Barbosa; mas isso desejava-o ardentemente. A melhor das mães não tem no coração mais soma de ternura do que ela mostrava ter para servir e cuidar do opulento septuagenário. Ela cuidava do café matinal, escolhia as diversões, lia-lhe os jornais, contava-lhe as anedotas do quarteirão, tomava-lhe ponto às meias, inventava guisados que melhor pudessem ajudá-lo a carregar a cruz da vida. Conscienciosa e leal, não lhe dava alimentação debilitante; pelo contrário punha especial empenho em que lhe não faltasse nunca o filé sangüento e o bom cálice de Porto. Um casal não viveria mais unido.
Quando João Barbosa adoecia, D. Joana era tudo; mãe, esposa, irmã, enfermeira; às vezes era médico. Deus me perdoe! Parece que chegaria a ser padre, se ele viesse repentinamente a carecer do ministério espiritual. O que ela fazia nessas ocasiões pediria um volume, e eu disponho de poucas páginas. Pode-se dizer por honra da humanidade que o benefício não caía em terreno estéril. João Barbosa agradeceu-lhe os cuidados não só com boas palavras, mas também bons vestidos ou boas jóias. D. Joana, quando ele lhe apresentava esses agradecimentos palpáveis, ficava envergonhada e recusava, mas o velho insistia tanto, que era falta de polidez recusar.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A melhor das noivas. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1877.