Por José de Anchieta (1563)
Seria longo repetir os golpes de cada um dos guerreiros,
as vidas que despenharam nos abismos da terra.
As armas lançaram no inimigo extermínios medonho.
O sangue correu em riachos que espumejavam:
muitos tombaram passados ao fio da espada,
muitos, de mãos e pescoço presos, carregaram cadeias.
Domado ficou assim seu furor indomável.
Cessou finalmente o terror, a altivez e ameaças
dos bárbaros; e voltou aos lusos a paz suspirada.
Só depois que as guerras findaram de todo, deixaram
os guerreiros as aldeias dos cristãos, bem seguras,
com pleno sucesso. Largam as velas ao vento propício.
A terra se afasta e as popas no oceano se engolfam.
Chegam finalmente à presença do ínclito governador.
Como é fácil de imaginar, estava ele ansioso
pela sorte do filho e pela dos companheiros.
Ao Pai onipotente orava com fervor dia e noite
livrasse os povos cristãos das fauces da morte
e exterminasse o furor do feroz inimigo.
Logo que soube da morte cruel do filho extremoso,
ainda que o amor sublime de pai lhe estremecia no peito
e lhe rasgava a alma com golpe profundo,
escondeu no nobre coração a imensa desgraça.
A virtude invencível dominou o sofrimento
ainda que atroz e consolou o amor dolorido,
porque a morte do filho salvou a vida de muitos.
Tão digno foi do filho esse pai e do pai esse filho!
LIVRO II
Mas já as obras que pela honra divina empreendeste
e teu entusiasmo operoso estão de mim exigindo
os louvores justamente merecidos, ó grande
governador lusitano! O Senhor tos dará generoso
e coroará teus trabalhos com honras celestes,
fiquem embora nossos cantos aquém de tua grandeza.
Pois quem lembrará o tempo das tribos ferozes
quando ainda os selvagens não te viam, chefe valente,
impor santas normas aos povos e lançar justo freio
a uma raça indomável? Que terror então invadia
o peito de todos! A quantos , boatos vãos incutiam
vergonhoso medo! O bárbaro expandindo sua ira
quebrantava as leis santas da mãe natureza
e os divinos preceitos do Pai onipotente
cevando as queixadas bestiais em corpos humanos!
Essa raça selvagem, sem a menor lei, perpetrava
crimes horrendos contra os mandados divinos,
proferindo impunemente ameaças contínuas e altivos
discursos. Então com arrogância o índio sanhudo
olhava para os cristãos, e estes, entrincheirados
detrás de seus muros, tremiam de pavor vergonhosos:
como quando lobos vorazes, que a fome impiedosa
açula e avassala, rangendo os dentes, cobiçam,
à ronda do aprisco, espostejar os tenros cordeiros
e extinguir a sede ardente no sangue que sugam;
lá dentro as ovelhas estremecem e fremem com medo
das feras que rondam fora, mal confiadas no aprisco.
Mal pisa o enérgico chefe os litorais brasileiros
com os poderes de governador geral que trazia,
para logo começa a desterrar de todos os peitos
os vãos temores, e a sacudi-los do torpor em que jazem,
incendiando-os no amor da verdadeira e única glória.
Determina não sofrer por mais tempo o orgulho dos índios
mas castigar com penas graves e justas os públicos crimes.
Um certo bárbaro então, de boca insolente,
lançou feroz aos cristãos mil desafios,
exprobrando-lhes o braço inerte e o peito cobarde,
bravateando contra eles terríveis matanças.
Chamava-se Cururupeba em sua língua materna,
nome que na nossa significa Sapo Espalmado.
Ao seu insensato orgulho e audaz arrogância
infligiu Mem de Sá digna paga, e assim começaram
a ter-lhe os brasis grande temor e respeito.
Já não ficarão impunes os crimes que há pouco
cometeste, ó Cururupeba, nem tua imensa soberba.
O braço valente dos cristãos lançou-te por terra
embora grande multidão dos teus te cercasse,
bem armados de flechas ligeiras, dispostos
a expor por teu amor a vida a todos os transes.
Mas a alma do grande herói firmada na força divina,
não obstante o receio da maior parte do vulgo,
resolve impor justo freio ao furor dos selvagens,
acalmar os vagalhões desse mar furioso.
Aos trinta homens que de cada aldeia escolhera
assim diz: “Ide e trazei-me preso esse louco
que tantas ameaças está contra nós vomitando.
Saiba ele enfim que não nos falta braço nem peito!”
Assim falou e eles partem em demanda das choças
enfumaçadas onde Cururupeba com a chusma dos índios
se aninha disposto a medir armas com armas.
Mas quem tudo pode abater com um aceno somente,
quem amansa as ondas do mar encapelado
e os ventos que as revolvem com sopros furiosos,
refreou-lhe a raiva e a inchada soberba
apertando-lhe o coração com gélido medo.
Firmes, os nossos não desistem, vão ter às cabanas,
cercam-nas, entram-nas e prendem a Cururupeba
no próprio esconderijo, e trazem-no preso p’ra fora;
tal o sapo escondido na cova, enchendo a pele e a bocarra,
parece ameaçar morte cruel com a baba empestada,
e mal do buraco o tiram com a mão, desaparecem
os sinais da raiva e deixa-se arrastar impotente.
Assim o prenderam indefeso, assim lhe amarraram
os punhos e lhe ataram os braços às costas,
e o conduziram vitoriosos ao governador em palácio.
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.