Feitos de Mem de Sá JOSé DE ANCHIETA (1563) Feitos de Mem de Sá é uma epopeia composta por José de Anchieta que exalta, em linguagem poética, as ações do governador Mem de Sá na consolidação do domínio português no Brasil. A obra narra batalhas, alianças e episódios marcantes do período colonial, destacando a visão religiosa e civilizadora que orientava o projeto jesuítico. Epístola Dedicatória Eis que vês, potentado supremo, quão grande façanharealizou a força do onipotente Deus.O indômito Brasil já seus anchos orgulhosdepôs, e tombou, rendido às tuas armas.O que dantes, furioso, semeava ruínas e guerras,aprecia os fatores de redentora paz.O que dantes vivia escondido em sombrias florestasaos templos do Senhor, já pressuroso corre.O que há pouco, cão feroz, roía ossos humanos,sacia com o Pão dos Anjos o coração já manso.O que há pouco de fauces sedentas, sugava o sangue fraternovoa a desalterar-se nos mananciais divinos.Foi a própria Onipotência que robusteceu os teus golpese prostrou a teus pés as inimigas hostesVês como de nada vales a esses ninhos altivos de pedratoda a estratégia das posições achadas.Inexpugnáveis embora à força humana as ameias erguidaspelo hábil francês no cimo dessa penha,Aquele que rege com seu braço o universo estreladoe pode com um aceno volvê-lo e revolvê-lo,franqueou-te, ó vencedor, o forte de rochas horrendase a soberba de sua mole sob os teus pés meteu,nem sofreu te barrassem o passo as flechas aladasnem as balas que vomita a poderosa pólvora,nem tão os pelouros que pelos ares arrotacom tremendo fragor o ventre do canhão.Quando já te faltavam as forças e tua esquadra cediadesfalcada pelo baque de muitos de teus heróis.Quando já se acabara a pólvora que alimenta o incêndioe que ao fogo voraz vem provocar as iras:Jesus compadecido olhou-te das alturas celestese veio ele próprio a estender-te a mão.Rendido às tuas preces, ele ouviu teus pedidos,incutiu terror e pôs o inimigo em fuga.Já no intimo peito podes fruir gozos nunca provados:é a quadra formosa duma alegria nova.Já podes exultar entre os vivas deste egrégio triunfo:esta palma ergue-te o nome ao apogeu da glória.Glorifica ao Senhor, que com seu braço invencívelesmagou os inimigos e seus fortins ativos.Só a ele pertence derrubar sanguinários tiranoscalcar ao chão os maus, erguer ao céu os bons.Aspira aos fulgores, que inundam o palácio celeste,se é que o amor da glória teu coração enleia.Bem sabes que o brilho fementido do mundofoge ligeiro e leve, e se desfaz na fuga.Como se esvai pelas fendas da jarra partidao líquido, e baldado é procurar enchê-la.Assim a honra fugaz, como água, flui e se escapapor entre os dedos que segurá-la tentam.Se te deres ao lazer silencioso de revolver em teu peitoas empresas heróicas dos generais famosos,verás quantos triunfos varreu a lúgubre mortepara as águas imundas da infernal voragem.É que ensoberbecidos negaram ao Senhor sempiterno,que tudo fez no mundo, glórias que alcançaram.No tênue respiro da vida sorveram vãos elogiose todo o seu cuidado foi sua própria fama.Se és prudente, pede a Deus uma única glória,a que só vem de Deus, a verdadeira glória!Se és prudente, rejeita os enganos do mundo que gira,não te acorrente com seus grilhões os pés.Com suas fraudes enleia, com a face ingênua nos mente:e não nos deixa erguer a fronte altiva ao céu.Depois que escalaste as árduas muralhas do fortee a glória de teus louros refulge mais que nunca:não te envolva em suas malhas o soberbo tirano,e, apenas vencedor, te calque aos pés vencido.Ouve pois as palavras que Jesus, o mestre divinote dirige com lábios que enganar não podem:“Se queres ser perfeito e galgar as alturas celestes,vai, vende o que tens, e dá-o todo aos pobres!”Vê como ele próprio, porque seus pés são ligeiros,voa como um gigante que não afrouxa o passo:para que, apressado, seguindo-lhe a esteira sagrada,sacudas pesos mortos e partas livre e leve.Se te sustarem o passo riquezas e glórias do mundo,Jesus, que não para, te escapará dos olhos.É certo que a soberba, com seus afãs só compra o infernoe com pouco trabalho o humilde compra o céu!Se pois com justo ódio desejas vencer o orgulho mundanoa Cristo atribui todas as tuas glórias!Do fundo do coração ao Pai celeste dá graçase rende a Jesus as merecidas honras.Foi ele quem quis que fosses tu nas regiões brasileirasprimeiro propagador de seu bendito nome.O primeiro a vingar os ultrajes do gentio inumanoe dobrar-lhe a cerviz às tuas ordens justas.Ao peso do teu braço, os altivos Brasis esqueceramseus ferozes costumes e seus sangrentos ritos.Eia! novo ardor, ancião! extermina as maldades,submete ao Deus eterno essas nações selvagens.No céu te espera um trono, grande Mem; para aí te convidamos fulgurantes templos do firmamento azul.Aquele, cujo nomes ensinas a louvar em plagas incultas,até aos astros levantará teu nome.Entre laudas divinas dar-te-á eterna coroae o ilumina cetro de seu celeste reino.Enquanto a fé e a lei de Deus e nome de Cristoforem reverenciados no hemisfério austral,os sucessores que empunharem teu bastão gloriososeguirão tua trilha sem arredar passo.Vive pois feliz, governando as plagas Brasílicasnuma estrada de glória que teus vindouros sigam,para que Cristo expulse o tirano infernal, das terras do Sule nelas implante os eu reinado eterno! LIVRO 1As glórias do Pai celeste e sua força divinateu nome, ó Cristo Rei, e teus feitos gloriososcomeçarei a cantar. Num arrojo gigante,empreenderei a celebrar em versos tuas magnas empresas.Pois há pouco tua força descerrou uma aurorapor entre a escuridão das regiões brasileiras,que o úmido Sul encharca com furiosas rajadas.Esse vento impele nimbos e arma tremendas borrascasnos altos mares, e cobre com véus de névoas os campos;fustigando com frio a nudeza das gentes.Já os astros que orvalharam o mundo oprimidobrilham de luz mais fulgente, e o sol conduz o seu carrono límpido espaço e, com novos raios, do céu afugentanuvens densas, dissipa névoas e seca o solo embebidode longas chuvas e, todo-luz em seu disco brilhanteenche de claridade as trevas do mundo.Tu, ó Jesus, ó clara luz do firmamento sereno,ó fulgor sem ocaso, ó imagem do brilho paterno,ilumina-me a mente cega, aclara-me a almacom esplêndidos lampejos. Tu és a fonte ubertosadonde, em torrentes, se inebriam os habitantes celestes.Fecunda meu coração de copioso orvalho e derramasobre mim fontes vitais, ondas de vida:Inunda meu peito árido com teus raios divinos:Assim cantarei os prodígios que teu braço potentehá pouco operou em favor da gente brasileira,quando fez raiar, rasgando as trevas do inferno,na arcada celeste, esplendoroso arrebol.Envolta, há séculos, no horror da escuridão idolátrica,houve nas terras do Sul uma nação que dobrara a cabeçaao jugo do tirano infernal, e levava uma vidavazia de luz divina. Imersa na mais triste miséria,soberba, desenfreada, cruel, atroz, sanguinária,mestra em trespassar a vítima com a seta ligeira,mais feroz do que o tigre, mais voraz que o lobo,mais assanhada que o lebréu, mais audaz que o leão,saciava o ávido ventre com carnes humanas.Por muito tempo tramou emboscadas: seguia,no seu viver de feras, o exemplo do rei dos infernos,que por primeiro trouxe a morte ao mundo, enganandonossos primeiros pais. Dilacerava os corpos de muitos,com atrozes tormentos, e, embriagada de furor e soberbaia enlutando os povos cristãos com mortes freqüentes.Mas um dia o pai onipotente volveu os olharesdos reinos da luz à noite das regiões brasileiras,às terras que suavam, em borbotões, sangue humano.Então mandou-lhes um heróis das plagas do Norte,um heróis que vingasse os crimes nefandos,que banisse as discórdias, freiasse o assassínio,bárbaro e contínuo, acabasse com as guerras horrendas,abrandasse os peitos ferozes e não sofresse impassívelcevar-se em sangue de irmãos queixadas humanas.E já trezentos e doze lustros o tempo volvia.depois que o Criador dos astros, feito homem,saíra do seio da Virgem Maria impoluta,iluminado de esplêndidos fulgores a terra,sepultada, há séculos, no negror do pecado.Eis que, liberta dos perigos do mar e de há muito esperada,uma esquadra fundeia na baía a que todos os Santoslegaram o nome. Trazia, salvo das fauces do oceano,um singular herói, de extraordinária coragem,Mem, que do sangue de nobres antepassadose de seiva ilustre de longa ascendênciaherdara o sobrenome de Sá. Superiores aos anos,ornam-lhe o rosto barbas brancas e majestosas:alegres as feições, sombreadas de senil gravidade,vivos os olhos, másculo o arcabouço do corpo,frescas ainda, como de moço, as forças de adulto.Muito mais excelente é a alma: pois lha poliramvasta ciência, com a experiência longa do mundo,e a arte da palavra bela. Arraigado no seiotraz um amor de Deus, santo, filial, verdadeiroe a fé de Cristo jamais desmentida. No peito,incendiado pelo sopro divino, ferve-lhe o zelode arrancar as almas brasílicas às cadeias do inferno.Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasilte contemplou! quanto bem trarás a seus povosabandonados! com que terror fugirá a teus golpeso inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínaslançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!Mas muitas lágrimas doridas a primeira refregacustar-te-á. Nela tombará um filho queridovarado de setas, e tingirá as praias de sangueinda jovem, lançando às auras o tênue sopro da vida.Tu porém leva sempre ante os olhos a glóriado Pai celeste: nem males nem a desgraça te dobrem!Para sempre a morte ser-lhe-á mãe da vidacom a bela alma acesa no amor da fé verdadeiraarrostará a morte que o sublimará à mansão da beleza.Ainda as brônzeas proas não tinham ferradoo litoral. Depois dos trabalhos do mar, muitos e vários,deixaram a costa africana, zona que o sol esbraseia.Ainda para lá, o céu adverso e as correntes marítimasos retornam com fúria aos fustigos do vento:enquanto ferozes guerras e cruéis injustiças,causa de tantas dores, esperam a energia do chefe.Lá ao longe, cultivam terra feraz uns poucos colonos,Cingidos em redor de altos montes e praias rochosas,por onde o Sul chuvoso solta as rédeas em fúria,ergue ondas revoltas, envolve em névoas, mares e céuse varre com turbilhões de nuvens os campos.Deu à terra seu próprio nome o Espírito Santo.Habitam-na portugueses. Guerras horrendasdesfecha sobre ela o Tamoio feroz: é este o nomeque a fera tribo herdou dos avós. Inúmeros danoscausa por toda a parte, talando as culturas em frutoe arrebatando os homens. Afastam-se altivos com a presae fartam-se de sangue humano os ávidos ventres.eis que se ajuntam, vindos de várias paragens,em magotes cerrados, para arruinar para sempreas aldeias cristãs, ferve-lhes nas veias a raivaa louca paixão da guerra e o apetite da carnehumana, batem os corações em fúrias amentes.Se o braço de Deus não impede esses aprestos ferozescom o socorro celeste, senão dispensa essas tribos altivasque vibram ao incêndio da guerra e ao faro do sangue,em breve a ímpia guerra tudo terá conspurcadoe encharcada se verá a terra no sangue dos justos.Transposto finalmente o oceano, fundeiam no porto.Sabe então o valente chefe que cruas guerras se aprestamcontra os cristãos, tribos ferozes se insurgemde toda a parte, decididas de uma vez para semprea ferir, matar, devorar a todos os brancos.O primeiro cuidado do chefe foi erguer logo a menteao Pai celeste e revolvendo em silêncio todos esses sucessosimplorar para os sitiados o auxílio que descecopioso do alto: pois a clemência onipotente, vencidapela prece dos filhos, sobre eles se inclina piedosa.Escolhe depois duas caravelas da armadae manda equipá-las. Envia Fernão à peleja,seu filho querido, ainda na primavera da vida,jovem de coração varonil, alma plasmadanos moldes paternos, enche-lhe o coração de conselhos,e diz-lhe: “aprende, filho, desde os anos mais tenros,a buscar no trabalho as virtudes e a glória,não honras humanas: pois que haverá sobre a terracapaz de encher-te a alma?” No coração insculpidoleva o nome de Deus, e, na chama da fé abrasado,onde quer que apertem os trabalhos da guerra,arroja o dique do peito à maldade furiosa.Vês como gentes cruéis em hordas imensas preparamaos Cristãos batalhas ferozes. De morte humilhanteameaçam agora as cabeças dos pobres colonos,quais tigres cruéis em redor da preia lanhadasorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.Que esperança ou que alívio resta ainda aos sitiados?Donde tirar auxílio? com que forças enfrentar inimigotão sanguinário? com que esforço, tão poucospoderão repelir das aldeias as ondas que avançam?Se é força buscar na fuga a salvação (vergonhosoembora o proceder), se é força deixar ao selvagemlares e férteis campos? lembra-te que mares profundostolhem a retirada, nem têm naus que sulquem as ondasdo pego irado, e salvem a vida pobres que tudo perderam.Eia, pois, sem tardar, lança-te ao mar encrespadoe de novo provoca as vagas em naus bem armadas.Voa em auxílio da pobre gente no que puderes.Qualquer a sorte que te espera, quaisquer os trabalhos,esforça-te por arrostá-los e suplantá-los com brio.Se a destra onipotente te conservar são e salvoe te conceder, com a derrota do inimigo, o pendão da vitóriae desdobrar ao olhar paterno os sinais do triunfo:ditoso dia nos será a ambos! A Deus soberanocumpriremos os votos e renderemos os devidos louvores.A glória conquistada em guerra pela honra divinate será muito doce: eis, filho, o teu belo futuro!Se porém por desígnio imutável do Pai sempiternoo último alento te colher na primavera da vida,se a morte te arrancar em plena flor da existência:então te aguardarão imarcescíveis louros e honra perene,glória imorredoura dourará nos céus teus destinos!Trocam-se assim pelo dia eterno efêmeros diasÀ luta pois com braço forte, e no fundo do peitogravado o nome do Senhor que governa o universo”!Assim falando envia o filho à empresa gloriosa.Dá-lhe quatro dezenas de companheiros bem equipados,manda soltar ao vento as velas, e à divina clemênciaroga auspiciar as primeiras estréias do jovem.De pronto ergue as âncoras a marujada valentee em voz cadenciada puxa as amarras que vai recolhendoem círculos. Volta proas à vaga a marulhar mar em fora,desdobra dos altos mastros o cândido linho,enquanto o vento, bojando as velas, as cordas estira.O Norte se abate sobre o mar, o casco impelindoe abaulando as velas; voa a lisa proa, cortandoo pego espumante, roçando apenas o dorso das ondas.Ora aqui, ora além fundeia nos litorais rumorosos.Só se abranda o rondo do oceano enraivado,quando a Ursa Maior o bafeja com ventos propíciose a nau, vencida muitas milhas, ferra os diversosportos dos cristãos. Muitos logo aí se oferecemao intrépido chefe para sócios da empresa e da sorte.Vai pois o jovem brioso escoltado de cem companheirosansiosos por domar com as armas a altivez do selvagem.Já no termo da rota, e perto das aldeias dos brancos,a que vinha socorrer ainda a tempo, penetrana foz espaçosa de grande rio, e remandocontra o ímpeto da corrente veloz, se dirigeao acampamento inimigo. Aí ajuntara o gentioforças vindas de toda a região em redor.Das fortificações, umas se ocultam em selvas sombriasdo lado em que o sol, deixando o zênite, se engolfa no plaino;outras, escondidas juntos dos litorais arenosos,ouvem o troar das ondas que se enrolam e quebram.O melhor da mocidade foi destinada a esses lugares:ergueram aí, em vasta construção, três fortalezascercadas de larga trincheira de troncos gigantes.Rodeavam cada um dos fortes seis voltas de lenhos,robles descomunais, fincados na terra, ligadosa madeiras transversais com cipós da floresta.Era um muro soberbo: duas torres e três baluarteso reforçavam de cada lado; neles estreitas janelas,quais furos invisíveis, foram deixadas, por ondepudesse o arco estridente soltar a seta ligeira,causando com golpes traiçoeiros feridas de morte.Aí se ajuntara toda a juventude guerreirade sangue borbulhante e sedento de lutas infames.Brande as armas feroz: o arco e as setas velozes,o tacape ornado de penas várias, alisado e polidopela mão do bárbaro com o ferro ou dente afiadodo porco montês: em todas as suas ferozes usançasé a arma que os serve. Têm também impenetráveis escudos,couros peludos, arrancados ao dorso das ferase endurados ao sol. Pintam os membros robustoscom as cores da tribo: tingem com listas vermelhasas faces, a fronte e as meias pernas; o resto do corpocom riscas pretas, tão bem enlaçadas, membro por membro,que imita a pele pintada verdadeiros vestidos,que em nada desmerecem dos que, com o requinte da arte,borda a agulha na mão habilidosa do artista,nem das redes caprichosas, tecidas de fios variados.Outros depenam o peito e as costas de inúmeras avese tingindo-lhes as penas de variadíssimas corescolam-nas ao corpo, untado todo de visgo.Outros ornam o topete com asas de pássarose dependuram muitos enfeites dos penteados cabelos.Com estes e muitos outros adereços, medonhos e feios,cobrem os membros nus os selvagens ferozes.Ao vê-los o herói, poderosos em número e armas,aí reunidos para saquear barbaramentea gente lusitana toda, estas palavras amargasdisse cheio de indignação: “eis aí, companheiros,as hordas cruéis que distilam dos peitos malvadoso veneno mortal do furor e do ódio implacávele nos ameaçam com a guerra o completo extermínio.Contra nós se arrojarão em bloco cerrado,com todas as forças que a raiva esporeia.Cumprirão seu desígnio nefando, se em estréia brilhantenossas armas não lhes quebrarem o furor sanguinário.Daqui nasceu toda a guerra. Portanto com peito invencívellancemo-nos, todos, contra as hostes selvagens.Adiantemo-lhes a morte que contra nós preparavam,e que eles merecem. Eis a hora dos valentes e bravos!Alento e energia nos dará o Deus poderosoque domina as alturas. Sua mão vingadorasobre o inimigo desumano descerá justiceira.Vingando as ofensas sacrílegas, sua cólera santadizimará com a morte as alcatéias ferozes.”Terminada esta arenga, com armas divinasrobustece o peito: com cuidado examina a consciênciae a seguir aos pés do sacerdote de Deus se ajoelha,para isso o chefe piedoso consigo o trouxera,e liberta-se do peso das culpas que talvez contraíra.Entusiasmaram-se os soldado: a fala do chefecalara fundo nas almas. Seguindo-lhe o lúcido exemplopurificaram os corações de todas as manchascom a confissão. Lavra nos peitos agora incontidoo fogo da guerra, e justa ira lhes ferve nas veias.Já a noite avançada vencera metade do cursoe transmontando-se inclinara para os pousos celestes.À voz do chefe toda essa mocidade guerreiraatira-se às armas, rema contra a corrente, ao encontrodo arraial inimigo. O brilho sinistro das armasinvade o rio. Branquejam as águas da espuma dos remos.Saem-lhe ao caminho correndo os cruéis inimigosem chusmas: uns arrojam da terra chuvas de setas,outros coalham as águas de igaras ligeirase de perto esticam os fortes arcos. Voam zunindode toda a parte flechas em profusão, gemem os arcosao romper da seta emplumada, silvam os aresà passagem das flechas, aturdindo os ouvidos dos bravos.Ora a este, ora àquele procura alvejar com golpe certeiroa turba furiosa: com a seta veloz semeia feridas.Fremindo de raiva luta por afastar aos invasores.Estes porfiam em contrário e avançam cortandoa corrente adversa do rio: com incessantes descargas,que a pólvora arroja entre nuvens de negra fumaçae estrondo soturno das parias, castigam o arraial inimigo.Arrebatado de ardor, com a voz, com o braçoo terrível Fernão, seguido dos seus bravos, acossa,dobra e afugenta das águas a chusma dos bárbaros.Como quando das regiões polares o Norte impetuosose arremessa ao encalço das nuvens pelos espaços;vencidas, elas debandam em rápida fuga,varrendo os nimbos da altura, o azul imenso floresceno firmamento; estira o vento das fúlgidas asase vencedor, aspira livre as auras celestes:assim o jovem, seguido de seus valentes, expulsada superfície do rio as hordas todas dos inimigos.Estes, apenas alcançam a terra, buscam velozesos arraiais, precipitam-se desordenados qual no mar altoo desencadear do Sul. O temor dá-lhes asas às pernas.Mal se emboscaram nas elevadas trincheirasobstruíram as entradas com troncos gigantes:urram dentro, atroando os ares com bárbara grita.Parecia que do céu os astros se despenhavamfragorosamente ou que terrível tufão abatiaa floresta, rachando os robles estrondosamente.Uns, da cabaça curva espetada de longose reboantes canudos, tiram sons cavernosos.Outros sopram horrendamente em búzios recurvosecoando um som medonho: são os clarins dos selvagens.Preparam as armas e nesse ínterim, quando um mistode terror e de raiva os agita, eis que o heróiaborda a margem do rio e calca firme a areia.Fixa a cada soldado seu posto, vibram os peitos de todos,a passo acelerado avançam pelo longo da praia,de armas em punho. Reluz o ferro das lanças,a espada de dois gumes e o fuzil que as balas vomitacom horrível estrondo, quando sobre a pólvora saltaa faísca sedenta, levando ao inimigo rápida morte.Lá avança pelo seco areal, a passo firme, Fernão,esbelto mais que todos os outros , trazendocomo um sol prateado nas armas fulgentes.Enérgico, ateia nos companheiros a chama da guerra,e todos já próximos dos arraiais se atiram a um tempo,a alma em fogo, decididos a romper a trincheiraà força de golpes, e acabar com essa gente odienta.Postam-se em linhas de ataque, do peito indignadorompem brados medonhos: não se atrevem os bárbarosa sair em campo e terçar armas com os sitiantes.Contentam-se com defender nos fortins e nas cercasesperanças fagueiras. Pelas frestas, deixadas adrede,arroja, uma chuva de flechas, no intuitode impedir aos invasores o assalto dos muros.Com não menor afinco os nossos atacam e tentamentrar ora aqui, ora ali, lançando, furiosos, inúmeras balasque a pólvora expele com fragor horripilante.Voam os projéteis zunindo e abrem rombos nos troncose dizimam hordas selvagens. Em fileira cerradao general e seus jovens guerreiros investem, expondoos corações valentes à morte. O braço esquerdo no escudoresguarda-os das flechadas, enquanto o direito manejaas armas ruidosas e rompe com o machado impiedosoo muro de robles. A força as entradas; o ferrorasga as trincheiras, arromba as seis voltas de lenhos,arrancando os madeiros gigantes. Lá se escancaramenormes abertas: atiram-se por elas com estrondoos jovens todos, qual rio raivoso, depois que rompeucom esforço aturado os diques, se espraia nos camposrolando troncos, bosques inteiros, no turbilhão horroroso.Repentinamente, eis que novo terror se apossa dos inimigosao verem que os heróis com mão de ferro romperam as cercase com machadinhas ferozes tudo abatem por dentro.Ainda não se esgota a fúria selvagem: nos peitos magoadosestuam juntos medo e cólera. Correm todos a um pontoe opondo troncos sustam os invasores e sem perda de tempocravam-no de mil flechas velozes e os cobrem de chagas.Aos índios desesperados, acirra-os a certeza da morte.Eis senão quando, desgarrando-se uma seta emplumadacorta o espaço silvando horrendamente, vindo cravar-sepouco abaixo do peito de um soldado e lhe rasgafundo as entranhas. Tomba ele mortalmente feridoe exala para logo o derradeiro suspiro.Rápido, o selvagem rearma o arco para nova flechada,firma atrás o pé direito e os dois braços robustos distendeem sentido oposto: parte a seta ligeira a fincar-seno corpo de um segundo e o prostra estendido por terraem agonia. Ergue a horda selvagem um clamor de vitória,vibram os peitos feros e de furor se avolumam.Ao contemplar a morte cruel dos amigos valentes,o coração magoado do herói e de seus companheirosreferve de dor e o fogo da vingança os abrasaaté os ossos. Atiram-se como essas feras da Índiaque, acostumadas a transportar no dorso gigantefortins de madeira e homens armados para a batalha,se enfurecem à vista do sangue, desordenam co’as patasas fileiras inimigas e arrastam em medonha ruínarobustos soldados, escudos e capacetes empenachados.Assim se inflamaram os guerreiros e a raivar se lançaramcontra os ferozes contrários, e atracando-os de pertorasgam chagas mortais com as adagas em punho.É tudo pressa, tudo azáfama: a este fende-lhe o peitoum golpe de espada e a ferida fatal lhe devassao abismo profundo; raivosamente o selvagem se virade borco para o chão natal, e morde a terra morrendo.A outro atravessam as ilhargas com a ponta da lança.A terra geme ao baque do peso; um soluço lhe arrancagolfadas de sangue e sacode os membros agonizantes.A inúmeros outros, as finas espadas lhes varamlados e intestinos; aparecem à luz as entranhase escapam as vísceras, conspurcando-se a terra.Acende-se mais e mais a coragem do chefee seus bravos: derrubam a golpes mortais, muitos selvagens.Ora decepam braços enfeitados com penas de pássaros,ora abatem com a lâmina reluzente cabeças altivas,faces e bocas pintadas de vermelho urucum,ora partem as frontes salientes entre as covas das têmporase enchem o Tártaro triste dessas vidas sem rumo.Soam armas e golpes e gemidos e baques de corpos.Aqui e ali jazem cadáveres de inimigos crivadosde chagas profundas, empastados de pó: a sangueiracobre os arraiais e espumante se embebe na areia.Não sustenta mais o embate assim dizimada,a horda selvagem. Volta as costas e em fuga apressadaabandona as cercas e escapa por portas bem conhecidas.Mal puderam os inimigos fugir às lanças e temidas espadase salvar a vida acolhendo-se à segunda trincheira,inútil refúgio do desespero; atrás do muro de troncosse escondem e tapam as entradas com grandes barreiras.Eis que , não sofrendo demoras, com as armas tingidasno sangue inimigo, Fernão com seus jovens briososacorre, e olhos na glória, se precipita ao assaltodo arraial medroso, e à força de golpes arrombamos robles enormes, abrindo numerosas e largas entradas.Uma vez dentro estraçalham a fortaleza e trucidama turba inimiga, ceifando com a espada afiadaesses corpos brutais. Junto ao mar o estrondo ecoa medonhoenfurece horrendo na praia o soldado matandoe enterrando vitorioso na areia corpos aos montes,no inferno vidas que cevavam as carnes em carnes humanase impinguavam os ventres com o sangue dos homens.Já não se alonga o combate, já não pensa o inimigoem entesar o arco, e defender a vida com brio.Tudo é pressa em fugir, não lhes valem de nada os redutos,só resta galgar ligeiro as muralhas do último forte.Nossas armas gloriosas prostraram o feroz inimigo,rompendo à força as trincheiras com vasta matança.O general e seu bravo esquadrão, cansados emborado duplo esforço e com os corpos crivados de flechas,conservaram ainda frescas a conhecida energiadas almas nobres: vibram de entusiasmo: uma de duas,ou acabar com as hordas bárbaras ou deixar no combatea vida, comprando com o sangue a vitória da pátria.“Triunfadores meus, diz o chefe, vossa espada valente,armas e destras estão tintas ainda do sangue maldito;sem tardar, lancemo-nos contra o inimigo vencido,enquanto o abate o terror das últimas duas batalhas.Vedes quantos aí estão prostrados a gemer moribundos,quantos outros na fuga receberam mortais ferimentos.Ou exterminar de vez esta raça felinacom a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areiagloriosamente”. A estas palavras, parte. A todos devorao mesmo fogo. Arrojam-se como impetuosa correnteou como a tempestade negra que revolve o oceano,encapela as ondas, rasga o linho branco das velas,quebra os altos mastros, e, girando três ou quatro vezes as popasas submerge voraz em rápido redemoinho.Quantos estragos não causou então o braço valentedo jovem chefe! quantos corpos de guerreiros ferozesarremessou à morte, tomando vingança no sangue inimigo.Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços,fervesse-lhes no peito um sangue mais quente,acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe,e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens,atirando-os para as sombras eternas do inferno.Mas, ai! que imensa é a humana inconstância!Estes, mais aqueles começam de vacilar, vai-os prendendopavor covarde, cada vez maior, ao verem que a ondados índios cresce, já recuam e se furtam à luta,esgueirando-se insensivelmente, esses covardes sem nome.Tornam às naus, desligando da margem as barcas.Abandonam o chefe, que ignora esse ato de infâmia,entre poucos companheiros, o furor da pele renhida.“Para onde fugis, desgraçados? que medo vil vos assaltao coração sem brio? que inimigo estais perseguindotão à pressa? Já não vos movem os louros das duas vitóriase as fortalezas que tomastes com a morte de seus defensores?Apavorados de terror indigno, não vos envergonhaabandonar assim vosso chefe à fúria dos bárbarosentre tantos perigos, ao peso de tantos trabalhos.Para onde fugis? Sustai o passo! A maior parte dos vossossucumbe: voltai pois ligeiros e, ao lado do chefe, valentesdestruí o arraial. Para que tanto amor pela vida?”Enquanto, ardendo em fúrias, o jovem vai fulminanteespalhando nos acampamentos os horrores da morte,certo que os seus lutam a seu lado, e em esforço supremoesmagam as hordas bárbaras finalizando a peleja,eis que pouco a pouco em magotes os selvagens acorremà batalha. Mandam-nos das florestas vizinhas às cercas,para auxílio dos seus e reforço aos que iam cedendo.Por atalhos desconhecidos afluem de todos os ladosem grande número. Depois que enxameou essa turbaimensa, vai confuso rumor pelas trincheirase grita desacostumada até às nuvens se ergue.Tal o arroio sombreado que desce das altas montanhasentre seixos roliços num rolar gorgolhante,depois que a tempestade repentina despejou suas iras,chuvas vergastando montes e bosques e rasgando caminhosàs águas que correm a se ajuntar: então ele, soberbode tanta riqueza, se arroja e arranca à terra das margenstroncos gigantes, rola em redemoinho pedras enormes,imitando ora o rumor soturno das ondasora o rolar do trovão nas alturas celestes.Assim a turba imensa enchia já a cidadelae reanimadas pelo socorro, em luta desigual, apertavauns poucos de heróis, com o furor de vingançaque lhes incutia a derrota e a morte dos seus.O alvo principal de seus golpes, incessantes e rijos,é o jovem chefe, que mais e mais se enfurece, admiradode que o inimigo cobre de repente tanta coragem e força:não havia, há pouco, nesses peitos tanto denodonesses braços tanto vigor... A custo percebeu finalmenteque os seus deserdaram, enquanto ele mergulhava na turba,inebriado de sangue, olhos na derradeira vitória.Ao ver-se abandonado, entre os inimigos, com poucoscompanheiros, entendendo ser inútil lutar contra tantos,retira-se dos arraiais e pouco a pouco recuana direção do rio, para entrar com seus bravosnas barcas que aí estariam presas. Mas ai! os cobardesmenosprezaram as ordens e a vida do chefe e largarampara longe da margem a armada, cederama um temor vergonhoso: eis o chefe desses cobardes.O herói, em vão magnânimo, ao ver que os companheiroslevaram para longe os barcos e que a turba inimiga,em linha de batalha e entre gritos de guerra, começaa apertá-los, brada: “Para onde corremos, colegas?Já não nos resta esperança alguma! O inimigonos cerca de toda a parte, de toda a parte o oceano!A terra nos falta! buscaremos a armada, cortandocom o peito as ondas? para onde nos dirigir-nos no apertopresente? Pois, rompamos à ponta de espada essas hordas!Paira sobre a nós a morte? — que paire! Oh! que belodeixar por Deus as vidas caras na arena sangrentae comprar com esse sangue a vida de muitos!”Disse, e logo (pois já o ataque dos índios não davalugar a demora), à invocação do nome de Cristo.com os colegas se arroja contra os selvagens, postadoa arrastar na própria morte os corpos de mil inimigose a rasgar com o punhal reluzente mil feridas sangrentas.Os inimigos se apinham ao redor e o carregam com gritosde terror e com flechas: não lhes dá a horda descanso,como caçadores à volta do leão que freme asseteado:ele a raivar ruge horrendamente e feroz ameaçacom o olhar torvo, ora este, ora aquele, impertérritorasga com a boca em sangue os corpos que alcança:Eles o apertam, fincam-lhe lanças nas costas, nos flancosà porfia, até que todo roto de feridas sucumbee a terra treme ao baque dos membros robustos.Assim o enxame dos inimigos em cerco cerradoestreitou o jovem: esse o fere com a clava, aquele com setase em vão ele multiplica esforços. Em algazarra se arrojamsobre ele. Sem tréguas, apertam-no daqui e dali, insaciáveis.Redobram os golpes: as flechas lançadas de todos os ladosjá o cobrem todo, as armas tinem, rompe-se a malhada couraça, já não resiste a tantos golpes o escudo.Copioso lhe inunda o corpo e por completoo abandonaram as forças; a sede lhe queima a gargantae o pobre exala pelos pulmões a alma ofegante.Já tem o herói o rijo peito crivado de inúmeras setas,o sangue o cobre todo e lhe empana a belezados membros. A praia tremeu à sua queda. Tombandoos olhos moribundos se cravaram na altura.As próprias selvas e rochas e montes vizinhos e rios,chorando ao som das águas cristalinas, o viramcair ao peso das chagas, e arrancaram dolorosos gemidos.Ó venturoso moço, prostrado na arena sangrentadepois de devastar valente as hordas selvagens,bela morte juncou teu sepulcro de mil setas e corpos.Não te assediou o peito a fome do ouro nem da vaidade;mas a paixão imensa da glória divinae a honra imaculada de Cristo te imolanesse altar, para que sejam tuas feridas a vida de muitos.Vencido pelo amor da pátria e liberdade dos teus,vergaste a cabeça ante a morte, sob a espada inimigatombando na juventude em flor, primavera da vida.Sem tremer, desprezaste a terra pelo bem dos amigos,deixaste escapar, pelas chagas abertas, a vida.Grande jovem, eis tua glória! os séculos todossaberão que preferiste morte cruel à desonrade Deus, da pátria e do pai, e que, desconhecendoo temor cobarde, expuseste a vida aos maiores perigose apagaste, com teu sangue o incêndio da guerraque surgia ameaçador. Lembrar-se-ão os teus Lusose confessarão agradecidos dever-te tal benefício:graças a tua morte, eles vivem e desfrutam da paz.Venturoso Jovem, entre os felizes, nas alturas celestesbrilha a tua glória irmanada à glória divina.Privado embora do sepulcro teu corpo, escondidoembora no seio da terra ou no ventre dos índios,nada se te dá. Fica-lhes esta glória mesquinha,depois que as hordas ferozes com sua imensa ruínajuncaram as fortalezas, e com o sangue selvagemencheram o leito do rio, e dobraram as cervizes altivasà força de golpes, e se lhes abrandaram as iras.Mandam o chefe das armadas lançar mão dos remos velozesa toda pressa, e abrir vela aos ventos propíciossem demora. Deixam a um tempo a praia e na praiao chefe estendido. As naus deslizam do riopara o mar, varrem com a popa a superfície do pego,e dirigem-se ao porto dos cristãos, que em perigo de morteo governador geral mandara auxiliar da cidadenão acabasse com eles o feroz inimigo dos brancos.Eles, depois dos longos trabalhos da guerra e da fome,depois de mil ameaças do inimigo e perigos de morte,reconhecem enfim, na curva do mar, os navios amigos.Revigorados de nova esperança, erguem as armas ao alto,os peitos acabrunhados alijam cuidados que pesam.Mal puderam ouvir de perto a voz querida de amigos,e a notícia dos combates horrendos e das morte sangrentado chefe, os corações soçobram de dor repentina,transbordam as lágrimas pelas faces a mães e esposos,e deixam escapar do peito entre fundos soluçosestas queixas desoladoras: “E nós, jovem ilustre,nós, entre mortes tão cruéis, escapamos incólumes!...Não eras tu o repouso suave que teu pai preparavapara a sua velhice? Tu, para nos proteger a cabeça,entregaste a tua à morte sangrenta, aceitastepelo nosso descanso os duros trabalhos da guerra.Valia tanto, ilustre chefe, nosso bem comprá-locom tão duras feridas tuas e tanta amargurade teu amado pai? que sofras tu morte horrorosa,por nossa vida? que sejas pasto do cruel inimigo,e não nos confranjam a nós tuas chagas doridas,nem esse sangue que te escorre pela fronte robusta?Nós, esquecidos de tanto sacrifício? Tanto nos acobardao amor desta luz transitória e a paixão egoístade viver, que não nos deixa vingar tua morteem merecida desforra? Ah! vingar-nos-emos!”Abalados por tais pensamentos, sinais de funda tristezaderam todos . Prestam as últimas honras ao chefee aos companheiros mortos, e as exéquias preparam.Mães piedosas, virgens inocentes, meninos e adultos,velhos vergados ao peso dos anos, dirigem-se à igreja.Junto do altar, coberto e velado por pano de luto,está uma essa: bela faixa branca em forma de cruzabraça o ataúde em todo o seu comprimento.Cobrem-se de panos pretos também os altares sagrados.Círios em profusão enchem as luzes dos templos.Segundo o costume dos cristãos recitam o símbolodos Apóstolos e os mandamentos: então o ministro sagradoenvergando paramentos negros oferece preces e súplicasao Pai celeste e imola qual cordeiro inocente,o corpo de Jesus, vítima das culpas dos homens,que de mãos e de pés os cravos cruéis trespassarame a morte abateu sanguinolentemente.Daqui e dali, gemidos e soluços ressoam, e prantosentrecortados por gritos de mulheres; lágrimas corremem rios pelas faces, em altas vozes invocam a bondadedo Pai onipotente. Justamente sentidos , abalamcom súplicas os excelsos palácios celestes.Os próprios homens deixam correr pelas faces esquálidasgrossas bagas. Arrancam suspiros do fundo do peitoe com merecidas honras, os tristes funerais acompanham.Cumpre o sacerdote quanto exige o rito piedoso:oferece pelas almas do chefe e colegas os supremos sufrágiose ajudando-os com uma última prece, faz o giro da essa,asperge-a com a água santa e pronuncia as derradeiraspalavras, pedindo o descanso deles na eternidade serena.A lua resplendente erguera por detrás do oceanoseu rosto e completara uma só vez o disco brilhante.Os guerreiros que tão duros combates e riscos tinham corridopor terra e por mar, retemperam exaustos os membrose refazem as forças. Cicatrizam as feridas abertaspelas setas velozes, essas feridas inumeráveisrecebidas ao lado do chefe, enquanto com as espadasdizimavam o inimigo. Todos os cidadãos e tropas amigas,num só coração e num só grito, arrojam-se à guerrajurando vingar a morte cruel de Fernão, o valente,e aniquilar as hordas selvagens que cercavam a cidade.O inimigo erguera junto aos muros vastas trincheiras,e outras fortificações. Reunira inumerável exército,para desafogar sua raiva louca e ódio descomedido,exterminar o povo cristão em sangrenta matançae saciar as negras fauces e os ventres sedentos de sangue.Sem perda de tempo dirigem à força de remosas rápidas canoas contra a corrente. Distendem-seos duros braços e os músculos saltam. Sulcandoas ondas contrárias, voam e em porfiada corridaatracam no local inimigo, e de um salto ágilos pelotões fogosos pulam das barcas, palmilhamos litorais adversos, com altos brados invocamo poder onipotente e arrojam-se contra o inimigo.Nem valas, nem homens sustêm o assalto dos nossosainda que os embarque e fira a chuva das flechas.Encarniçam-se, e rompendo por sendas impraticáveis,abatem quanto se lhes ergue diante e acossam os bárbaros,crivando-os de feridas e juncando de mortos o campo.Também os nossos levam o peito varado de setas.Seria longo repetir os golpes de cada um dos guerreiros,as vidas que despenharam nos abismos da terra.As armas lançaram no inimigo extermínios medonho.O sangue correu em riachos que espumejavam:muitos tombaram passados ao fio da espada,muitos, de mãos e pescoço presos, carregaram cadeias.Domado ficou assim seu furor indomável.Cessou finalmente o terror, a altivez e ameaçasdos bárbaros; e voltou aos lusos a paz suspirada.Só depois que as guerras findaram de todo, deixaramos guerreiros as aldeias dos cristãos, bem seguras,com pleno sucesso. Largam as velas ao vento propício.A terra se afasta e as popas no oceano se engolfam.Chegam finalmente à presença do ínclito governador.Como é fácil de imaginar, estava ele ansiosopela sorte do filho e pela dos companheiros.Ao Pai onipotente orava com fervor dia e noitelivrasse os povos cristãos das fauces da mortee exterminasse o furor do feroz inimigo.Logo que soube da morte cruel do filho extremoso,ainda que o amor sublime de pai lhe estremecia no peitoe lhe rasgava a alma com golpe profundo,escondeu no nobre coração a imensa desgraça.A virtude invencível dominou o sofrimentoainda que atroz e consolou o amor dolorido,porque a morte do filho salvou a vida de muitos.Tão digno foi do filho esse pai e do pai esse filho! LIVRO II Mas já as obras que pela honra divina empreendestee teu entusiasmo operoso estão de mim exigindoos louvores justamente merecidos, ó grandegovernador lusitano! O Senhor tos dará generosoe coroará teus trabalhos com honras celestes,fiquem embora nossos cantos aquém de tua grandeza.Pois quem lembrará o tempo das tribos ferozesquando ainda os selvagens não te viam, chefe valente,impor santas normas aos povos e lançar justo freioa uma raça indomável? Que terror então invadiao peito de todos! A quantos , boatos vãos incutiamvergonhoso medo! O bárbaro expandindo sua iraquebrantava as leis santas da mãe naturezae os divinos preceitos do Pai onipotentecevando as queixadas bestiais em corpos humanos!Essa raça selvagem, sem a menor lei, perpetravacrimes horrendos contra os mandados divinos,proferindo impunemente ameaças contínuas e altivosdiscursos. Então com arrogância o índio sanhudoolhava para os cristãos, e estes, entrincheiradosdetrás de seus muros, tremiam de pavor vergonhosos:como quando lobos vorazes, que a fome impiedosaaçula e avassala, rangendo os dentes, cobiçam,à ronda do aprisco, espostejar os tenros cordeirose extinguir a sede ardente no sangue que sugam;lá dentro as ovelhas estremecem e fremem com medodas feras que rondam fora, mal confiadas no aprisco.Mal pisa o enérgico chefe os litorais brasileiroscom os poderes de governador geral que trazia,para logo começa a desterrar de todos os peitosos vãos temores, e a sacudi-los do torpor em que jazem,incendiando-os no amor da verdadeira e única glória.Determina não sofrer por mais tempo o orgulho dos índiosmas castigar com penas graves e justas os públicos crimes.Um certo bárbaro então, de boca insolente,lançou feroz aos cristãos mil desafios,exprobrando-lhes o braço inerte e o peito cobarde,bravateando contra eles terríveis matanças.Chamava-se Cururupeba em sua língua materna,nome que na nossa significa Sapo Espalmado.Ao seu insensato orgulho e audaz arrogânciainfligiu Mem de Sá digna paga, e assim começarama ter-lhe os brasis grande temor e respeito.Já não ficarão impunes os crimes que há poucocometeste, ó Cururupeba, nem tua imensa soberba.O braço valente dos cristãos lançou-te por terraembora grande multidão dos teus te cercasse,bem armados de flechas ligeiras, dispostosa expor por teu amor a vida a todos os transes.Mas a alma do grande herói firmada na força divina,não obstante o receio da maior parte do vulgo,resolve impor justo freio ao furor dos selvagens,acalmar os vagalhões desse mar furioso.Aos trinta homens que de cada aldeia escolheraassim diz: “Ide e trazei-me preso esse loucoque tantas ameaças está contra nós vomitando.Saiba ele enfim que não nos falta braço nem peito!”Assim falou e eles partem em demanda das choçasenfumaçadas onde Cururupeba com a chusma dos índiosse aninha disposto a medir armas com armas.Mas quem tudo pode abater com um aceno somente,quem amansa as ondas do mar encapeladoe os ventos que as revolvem com sopros furiosos,refreou-lhe a raiva e a inchada soberbaapertando-lhe o coração com gélido medo.Firmes, os nossos não desistem, vão ter às cabanas,cercam-nas, entram-nas e prendem a Cururupebano próprio esconderijo, e trazem-no preso p’ra fora;tal o sapo escondido na cova, enchendo a pele e a bocarra,parece ameaçar morte cruel com a baba empestada,e mal do buraco o tiram com a mão, desaparecemos sinais da raiva e deixa-se arrastar impotente.Assim o prenderam indefeso, assim lhe amarraramos punhos e lhe ataram os braços às costas,e o conduziram vitoriosos ao governador em palácio.E ele que há pouco lançava valentias aos ventose ameaçava feroz guerras, matanças e orgias,vê-se agrilhoado duramente e jogadona imundície horrível de um cárcere escuro,pagando o merecido castigo de seus crimes antigos.Não lhe desataram os grilhões, nem daí saiu livresenão depois que a zona oblíqua dos signosviu o sol percorrer a todos em seu rápido carroe passada a do Peixe reviu a constelação do Carneiro,transpondo os altos pórticos do firmamento estrelado.Entretanto divulgou-se pelas aldeias a novade que esteva em ferros Cururupeba: terror indizívelse apodera dos índios. Pasmam todos e tememcada qual pela própria sorte: como num bando de pombas,quando cruel gavião arrebata uma nas garras aduncas,as outras em debandada se escondem nos ninhos:a imagem da companheira no desastre recentecontinua a assustá-las e a entristecê-las ainda.O piedoso Mem de Sá, desejou depois distover adorado o Senhor do céu, do mar e da terrae venerado nas plagas do Sul o nome de Cristo.Resolve impor leis aos índios que vivem quais ferase refrear seus bárbaros costumes. Logo desterraa antropofagia cruel: não permite mais que movidosde gula infrene bebam o sangue fraterno,nem mais se violem os santos direitos da mãe naturezae as leis do Criador. Para logo o ignóbil vulgachoa quem movia ora ambição mal inspiradaora verdadeiro terror, pôs-se a espalhar estes rumores:“que novo governador é este? com que direito postergaas leis antigas e tenta impor novos costumesnovas normas de vida a indômitas gentes?Poderá ele agora persuadir a povos selvagenstratados de aliança? deixará a raça brasílicade comer carne humana, banindo do seiode seus filhos ódios cruéis e guerras antigas?Pois se o prazer destes bárbaros, justamente nisso consiste,atirar-se sempre em novas e ferozes batalhas,provocar os outros à guerra em que sempre viveram,rasgar-lhes com as unhas a carne, e piores que tigres,fincar os dentes em lanhos palpitantes de vida:devem agora aprender a esquecer seus furores,criar almas meigas e corações de cordeiro?Acaso não voltará sobre nós o feroz inimigotodas as iras e todos os braços devastando a cidade,se faltarem outros em que saciem a sede de sangue?Como é possível julgar que mudem agoracostumes que se embeberam na torrente dos séculos?Poderão os beberrões deixar de encher-se de vinhos,de vomitar o que beberam e de beber novamenteo que vomitarão? Não celebrar novas bodas esses devassose renunciando às antigas não se sujar em novas torpezas?Estes e outros costumes, herdados dos seus antepassados,e transmitidos como direito racial, de há longo tempo,sofrerão impunemente que lhos arranquem agora?Quão pouco conhece o índio altivo quem assim pensa!Quanto se engana quem tenta realizar tais projetos!Não está longe de permitir a ruína do povo!”Tais rumores que corriam, tais as críticas durasque publicamente se lançavam: um só temor o de todos,uma só preocupação, desviar o governadordos seus intentos, dobrá-lo com rogos e súplicas,força-lo a deixar as determinações que tomaratão resolutamente. Vão ter com ele bem premunidos,reunindo nesta fala o argumento de todos:“Grande governador, a quem Dom João o terceironosso felicíssimo rei entregou o governo brasílico;por desígnio da Providência, foi-te confiadoo nosso bem, para que em boa paz a todos dirijase olhes pelo bem estar de todos os súditos.Agora que abonançou a tempestade da guerra,que leis tencionas impor a esses povos selvagens?Proíbes aos índios as guerras? de que paz fruir poderemossenão se guerrearem entre si, saciando a sede de sanguecom que nasceram? De que maneira julgas possívelrealizar teus desejos? que deixe de comer carne humanao bárbaro que dela gosta? Podem os tigres viver sem a presae os leões ferozes deixar de despedaçar os novilhose os lobos perdoar às mansas ovelhas ? Antes deixará a baleiade encher de peixes o bojo, no vasto oceano,antes deixará o gavião, em vôo audacioso librado no espaço,de raptar tímidas aves, e a águia real de garras aduncasde levantar às alturas em revoada a lebre cativa:do que deixarem os brasis de devorar carnes humanas.Eia pois! pondera teus intentos com reflexões cautelosas.Não impeça que mutuamente se provoquem à guerrae se matem horrendamente, e, despedaçando seus inimigos,lhes assem a carne no rito paterno e lhe roam os ossosà maneira de cães, celebram as festas dos seus antepassadose não pensem em lançar contra nós os braços ferozes,nem desafoguem em nós suas iras de brutose sedentos de sangue nos passem ao fio da espadaa nós, nossas esposas e filhos, conspurcando de mortetoda a cidade. Tu serás a causa de tão grandes desgraças,tu o responsável único da irreparável ruínae do sangue derramado. Eis que te avisamos com temponós que conhecemos, de há muito, os costumes dos índios,e lhes experimentamos de perto a índole fera.”Assim falando, eles com acrimônia insistiamerguendo a voz diante do governador: este porém, cujo peitoera sacrário de Deus, confiado no poder de Jesus,cujo nome ansiava por tornar conhecido naquelasbárbaras plagas, com ânimo tranqüilo e semblante serenoresponde: “Vive o Deus que criou céus, terras e maresante o qual tremem as abóbadas do firmamentoe as colossais muralhas do imenso universo.Sua destra trar-nos-há auxílio a seu tempoe livrará os cristãos de tantas desgraças.”Assim disse e destemido põe-se a realizar seus projetos.Vós, irmãos nossos, habitantes das etéreas moradas,que pisais docemente o pavimento estrelado,e dessas alturas vos interessais pelos nossos destinos,a fim de ocuparmos um dia um trono convosco:dizei-me, eu vos conjuro, as alegrias que desfrutastespor todo o céu! as sinfonias de júbilos que decantastes!as alegres melodias que desentranharam os órgãos celestes!as notas que desferiram trombetas e clarins de vitória!os sons maviosos que jorrou a flauta sonora!que harmonia nas cordas da cítara! que hinos contentescantastes ao Pai celeste! com que salmos sentidosexaltastes ao som da harpa as glórias de Cristo:quando o índio começou a trocar sua ferocidadepor modos mais humanos e a conhecer o nome do Eterno!Vós, que por um pecador que lava seus crimesnas lágrimas do arrependimento, dais as maioresmanifestações de alegria por todo o templo celeste,como deveis exaltar com nova harmoniaeste triunfo de Deus! Começa a bárbara terraa sacudir dos ombros o tirânico jugo do inferno.Arrancada às trevas do escuro e lúgubre abismo,vai receber a luz divina do Sol sem ocaso,aprender as leis santas do Senhor Jesus Cristo,abraçar-lhe a fé e salutares doutrinas.Foi por vosso ministério que tão grandes milagresse realizaram. Vós, mais velozes que os ventos,a nossas plagas trazeis em revoadas contínuasas paternas disposições da Providência divina.Dizei vós as leis e a ordem que o ilustre e piedosogovernador implantou entre povos tão feros,para afinal ser honrado nestas paragens incultaso nome vitorioso, forte e imortal de Jesus!De início para poder jungir esses rudes selvagensao jugo da lei e moldá-los pela doutrina de Cristo,ordena que deixados recôncavos, campos, florestas,acorram de todas as partes a um mesmo locale aí construam novas casas, ergam novas aldeiase comecem a deixar os antigos costumes de feras;não vagueiem daqui e dali, como tigres, pelos cerrados,sem moradia certa, sempre duma terra p’ra outra,sem nunca fixar-se em aldeias estáveis.Era de ver como logo deixaram as enfumaçadas malocas,suas cabanas cobertas de palha e suas roças agrestes.Acorriam de todas as partes, movido da famae do muito medo que do governador se espalhara;todos se submetiam a si, suas esposas e filhossem ousar opor-se ou confiar em seus braços e armas.Decidido assim a impor nova ordem, novos costumes,o magnânimo chefe manda construir quatro aldeiasde amplo circuito, nas quais se reunam todos os índiosdas tabas em derredor e onde aprendam aos poucos,de coração já manso, as leis santas de Cristo.E porque o ano em quatro estações se divide,que o áureo sol percorre com sua luz fulgurante,fecundando-o com seus raios para que férteis ressurjamas searas e reverdeçam as veigas contentes e fartas,e a um tempo os frutos desejados madurem:assim Jesus, filho unigênito de Deus, com o lumede sua divindade, aclare estes brasis, repartidosem quatro aldeias. Roçados os tojais, revolvidosos campos ao labutar auspicioso do arado,fecunde ele esta gleba e enfim a esplêndida messepague aos lavradores os gemidos e as lágrimasque com as sementes lançara, por anos a fioe com o coração aos pulos, encham os celeiros vazios.Brotam as novas moradias; o índio, nômade há pouco,ergue seu teto que o abrigará muitos anos,e canta, em igrejas novas, o nome de Jesus, reverente.O pio governador impõe santas leis aos selvagens,e, desterrando costumes e ritos dos antepassados,vínculos que os ligavam ao tirano do infernoe lhes enlodavam as almas de culpas horrendas,substitui-lhes preceitos divinos que cortem abusos,lavem os corações afeiados e os rendam ao jugode Cristo que, com um único aceno, rege o universoReconheçam primeiramente o Deus do céu e da terra,a quem os esquadrões dos anjos e os astros celestes,os abismos do inferno e a mole terrestre obedecem:que o reconheçam e lhe cumpram as ordens divinas.Cessem já as cruas guerras e as sangrentas matanças,o bárbaro costume de espedaçar o inimigo,dessedentar com seu sangue as fauces sequiosas,e devorar carne humana: é só com a morteque se pagará tal crime, sangue por sangue.Dá força de lei civil a tudo quanto nos mandao Criador e aos renitentes com indignação ameaça.O terror se apossa de todos, curvam-se as frontes,por tanto tempo rebeldes, ao jugo de Cristo.Parecia que o próprio Deus lá das alturas celestes,falando ao Chefe, repetia essas mesmas palavrasque a ti, ó Patriarca cultivador da parreira,dirigira outrora, quando, refluindo da terra,as ondas do mar tornaram ao seio do abismo,e o solo do colono reapareceu à vazante das águas:“Sujeitas as plagas brasílicas! que o terror e o tremorque inspiras, invada os povos cruéis, que rompendo aliançascontra a lei natural, matam e espedaçam os homens,à maneira de feras.” Também a seus ouvidos soavaa voz de Cristo: “Força-os a entrar em meu santuário!que de povos diversos a minha casa transborde!”Assim se expulsou a paixão de comer carne humana,a sede de sangue abandonou as fauces sedentas;e a raiz primeira e causa de todos os males,a obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,para glória e triunfo do vencedor, foi desterrada.Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crimeafastam as mãos os que há pouco no sangue inimigotripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos.Há pouco a febre do impuro lhes devora as entranhas:imersos no lodaçal, aí rebolavam o fétido corpo,preso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna,vinculada pelo laço do matrimônio sagradoque lhe guarda sem mancha o pudor prometido.Para que lembrar os cantos que outrora entoavamem suas bebedeiras? os gritos com que atroavam os aresmedonhamente? as cores com que pintavam os membros?as penas variegadas com que enfeitavam os corpos?A beber, vira-os a aurora do seu róseo carro,e a tarde ao cerrar o dia nos umbrais do horizonte!e a noite negra ao rolar dos altos cumes celestese a nova amanhã ao despertar sob a força dos raios:já o belo sol, nascido neste segundo dia, engolfaranas ondas azuis seus corcéis, e eles aindaa atufar de vinho os abismos do ventre.Que espetáculo de sujidões, que visão de torpezas!Que obsceno os gestos dos homens, que impudicos meneiosos das mulheres que oferecem as lascivas bebidas!Fartam de vinho o ventre e, cheio, tudo vomitam,e bebem de novo e cheios aos vômito tornam..Um vomita, outro apanha na cuia o vômito e o bebe.Espetáculo horrível! aí se cantavam os feitos antigose as maldades criminosas dos seus antepassados,e feroz se erguia o ardor da guerra e do sangue,e fervia a paixão de despedaçar corpos humanos,e lançar em vasos novos os membros feitos em postas,pô-los a assar ao braseiro e espetar em caniçosos pedaços cortados em pequeninos. O desejo malvadode todos os crimes, sopitado e pouco a pouco envelhado,despertava e rejuvenescia ao ardor desses vinhos.Agora, tudo é silêncio! nenhum rumor se levantadas casas em confusão; cessou a loucura, e o descansotudo cobre delicioso. Tal qual sob o céu agitadopor tenebrosos trovões e varrido de ventos furiosos,Incha o mar, erguem-se as ondas, e os rolos das vagasatirando-se contra os rochedos rouquejam de espuma;e, quando os ventos pousam, calam-se e na lisura dos maresao sopro do zéfiro, as ondas de repente se amansam.Já não ousas agora servir-te de teus artifícios,perverso feiticeiro, entre povos que seguema doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosasesfregar membros doentes , nem, com lábios imundoschupar as partes do corpo que os frios terríveisenregelaram, nem as vísceras que ardem de febre,nem as lentas podagras nem os braços inchados.Já não enganarás com tuas artes os pobres enfermos ,que muito creram, coitados! nas mentiras do inferno.Não mais mostrarás ao doente palhas e fios compridosastuciosamente