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#Crônicas#Literatura Brasileira

Balas de Estalo

Por Machado de Assis (1883)

Entre os maçons que se denunciaram a si mesmos, refiro os nomes de dois pelas cenas bufas que essas denúncias causaram. Foram o Marquês de Angeja e o Conde de Parati. O rei caiu estupefacto das nuvens, e ainda lhe parecia impossível que dois camaristas seus, ambos estimados e um valido, fossem maçons! O Marquês de Angeja ajuntou aos protestos do seu arrependimento a oferta, que foi aceita, de toda a sua prata pare as urgências do Estado. Foi logo expedido em comissão para Portugal, a fim de tomar o comando e conduzir ao Rio de Janeiro a divisão auxiliadora, que se mandava vir extraída do exército de Portugal. Quanto ao Conde de Parati, o negócio era mais sério. O rei era muito afeiçoado a este conde, que foi no Rio de Janeiro o seu primeiro valido e morava no paço. Nem os protestos de arrependimento, nem a oferta de sua prata, que a não tinha, porque se servia da que era da casa real, podiam inspirar inteira confiança a respeito de quem, em razão do seu ofício e das relações de amizade, devia continuar no serviço e no valimento de Sua Majestade. Em tão apuradas circunstâncias, o rei saiu pela tangente de um expediente assaz curioso. Disse ao conde, que, pare lhe não ficar nada do passado, de que se arrependia, era necessário que tomasse o hábito de irmão da Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência. Foi um dia de festa no paço aquele em que o conde prestou juramento e foi recebido irmão da Ordem Terceira. O contentamento do rei não podia ser maior. O Conde de Parati, para fazer a vontade à Sua Majestade, andou no paço todo aquele dia com o hábito da Ordem; destinado a lavá lo dos seus erros.

Na verdade, a cena é engraçada, e força é dizer que o absolutismo tinha coisas boas. O marquês, dando a prata para salvar a pele, está indicando ao nosso governo constitucional um recurso útil nas urgências do Estado. Mas o caso do conde é melhor. Esse maçon, obrigado a passear vestido de hábito de São Francisco, foi um belo achado do rei. De certo modo, foi uma antecipação do conflito que mais tarde levou dois bispos aos tribunais, com a diferença que aquilo que o Conde de Parati só pôde fazer obrigado, foi justamente o que a maçonaria queria fazer por vontade própria: —andar de hábito. Não penso nisto que me não lembre do nome que em geral teve esse famoso conflito, um nome inventado para castigo dos meus pecados. Lembra-se o leitor? Questão epíscopo-maçônica. Recite isto com certa ênfase: —questão epíscopo-maçônica. Não lhe parece que vai andando aos solavancos numa caleça de molas velhas? Epíscopo-maçônica.

Já transcrevi outros trechos, mas recuei. São interessantes, muito interessantes. mas não são alegres. São anedotas relativas todas à independência, e nelas é que entram D. Pedro e José Bonifácio. Por conseqüência; o dito por não dito; não dou mais nada.

Contudo, sempre lhes direi, aqui, que ninguém nos ouve: o conselho de ministros no paço, as palavras de José Bonifácio ao Bregaro; a volta de D. Pedro depois de declarar a independência; a gente que correu a São Cristóvão; a imperatriz, que, não tendo mais fitas verdes para fazer laços, fê-los com as do próprio travesseiro; D. Pedro, um rapaz de 24 anos, impetuoso e ardente; José Bonifácio grave e forte, e, quando preciso, alegre; a gente que encheu à noite o teatro; as senhoras de laço verde ao peito; toda essa nossa aurora dá-me uma certa sensação profunda e saudosa, que não encontro... Onde? no nariz do leitor, por exemplo.

[29]

[26 abril]

ENFIM! Os lobos dormem com os cordeiros, e as lingüiças andam atrás dos cães. São as notícias mais frescas do dia.

Que os lobos dormem com os cordeiros, basta ver o anúncio que anda nas folhas, um anúncio extraordinário, pasmoso, um anúncio da Rua do Hospício. Vende-se ali, está ali à espera de algum amador que o queira comprar, não um chapéu ou um gato, não um jogo de cortinas, um armário, um livro, uma comenda que seja, mas um (custa dizê-lo!) mais um (ânimo!) mas um (palavra, só escrever o nome dá um arrepio pela espinha abaixo), mas um (vamos!) mas um tigre.

Sim, senhores, vende-se ali um tigre. O tigre, essa fera que os poetas arcádicos nunca deixaram de dizer que era da Hircânia, e ao qual comparavam os namorados, quando elas olhavam para outros; o tigre já não é um simples desenho dos livros infantis ou uma criatura empalhada do museu; o tigre vende-se na Rua do Hospício como o chá preto e as cadeiras americanas.

Um pouco mais, e vamos ouvir discursar um camelo ou um jumento, ou damos a calçada a verdadeiros cavalos. Se isto não é a terra da promissão, façam-me o favor de dizer o que é.

Quanto aos cães perseguidos por lingüiças, vão ver se minto.

Morreu um homem, deixando em testamento alguns legados. Noutro tempo, os legatários nunca mais perdiam de olho o inventário tinham procurador para lhes cuidar do negócio, farejavam o cartório, e passavam algumas noites em claro. Tudo mudou depois que os tigres se vendem na Rua do Hospício. Agora são os testamenteiros que andam atrás dos legatários. Um daqueles, desesperado de esperar por estes, fez um anúncio repleto de legítima impaciência, em que declara, decorrido algum tempo da publicação do testamento do Comendador Pacheco, que, estando o inventário a encerrar-se, pede aos interessados vão requerer o que for a bem do seu direito "sob pena de, julgadas as partilhas, irem haver do herdeiro da terça os seus legados."

Ubinam gentium sumus? Os legados atrás dos legatários as lingüiças farejando os cães! Deus meu, bateu finalmente a hora da harmonia e do desinteresse? Vamos ver as comendas atrás das casacas, e elas a fugirem-lhes vexadas e desdenhosas? Os vencimentos em vez de os irmos nós buscar, irão ter com a gente? Os bens passarão a correr atrás dos frades?

[30]

[15 maio]

CHEGANDO anteontem, à noite, de Macacu, onde fui estudar as febres de 1845, fiquei surpreendido com a notícia de ter o meu nome figurado em uma comissão que foi pedir a Lulu Sênior a reentrada do colega Décio. Jurei a todas as pessoas que era falso; mas mostraram-me o número da Gazeta em que Lulu Sênior narrava tudo, e com efeito vi o meu nome, e até palavras que me são atribuídas.

Parecendo-me a graça um tanto pesada, entendi que era caso de um desforço pelas armas, e incumbi dois amigos, o Dr. F. C., distinto médico, e um membro do parlamento, lhe irem pedir satisfação ou testemunhas.

(continua...)

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