Por Machado de Assis (1877)
Tem razão; não importam nada. Em todo o caso não é comigo?
EMÍLIA
Acha que lhe hei de perdoar a desfeita que me fez?
TITO
Qual desfeita, minha senhora?
EMÍLIA
A desfeita de me deixar tomar chá sozinha.
TITO
Mas eu já expliquei...
EMÍLIA
Paciência! O que sinto é que também nesse voltarete estivesse o marido de Margarida.
TITO
Ele retirou-se às dez horas; entrou um parceiro novo, que não era de todo mau...
EMÍLIA
Pobre Margarida!
TITO
Mas se eu lhe digo que ele se retirou às dez horas...
EMÍLIA
Não devia ter ido. Devia pertencer sempre a sua mulher. Sei que estou falando a um descrido; não pode calcular a felicidade e os deveres do lar doméstico. Viverem duas criaturas, uma para a outra, confundidas, unificadas; pensar, aspirar, sonhar a mesma coisa; limitar o horizonte nos olhos de cada uma, sem outra ambição, sem inveja de mais nada. Sabe o que é isto?
TITO
Sei. É o casamento... por fora.
EMÍLIA
Conheço alguém que lhe provava aquilo tudo...
TITO
Deveras? Quem é essa fênix?
EMÍLIA
Se lho disser, há de mofar; não digo.
TITO
Qual mofar! Diga lá, eu sou curioso.
EMÍLIA
(séria)
Não acredita que haja alguém que o ame?
TITO
Pode ser...
EMÍLIA
Não acredita que alguém, por curiosidade, por despeito, por outra coisa que seja, tire da originalidade do seu espírito os influxos de um amor verdadeiro, mui diverso do amor ordinário dos salões; um amor capaz de sacrifício, capaz de tudo? Não acredita?
TITO
Se me afirma, acredito; mas...
EMÍLIA
Existe a pessoa e o amor.
TITO
São então duas fênix.
EMÍLIA
Não zombe. Existem... Procure...
TITO
Ah! isso há de ser mais difícil: não tenho tempo. E supondo que achasse de que me valia? Para mim é perfeitamente inútil. Isso é bom para outros; para o coronel, por exemplo... Por que não diz isso ao coronel?
EMÍLIA
Ao coronel? (silêncio) Adeus, Sr. Tito, desculpe, eu me retiro...
TITO
Adeus, minha senhora. (dirige-separa o fundo. Emília vai a sair pela direita alta, pára)
EMÍLIA
Não vá!
TITO
Que não vá?
EMÍLIA
(prorrogando)
Não vê que o amo? Não vê que sou eu?...
TITO
V. Exa.?
EMÍLIA
Eu, sim! Debalde procuraria ocultá-lo... fora impossível. Não cuidei nunca que viesse a amá-lo assim... E olhe, deve ser muito, para que uma mulher seja a primeira a revelar... Pode acaso calculá-lo?
TITO
Deve ser muito, deve... mas a minha situação é difícil: que lhe hei de responder?
EMÍLIA
O que quiser; não me responda nada, se lhe parece: mas não repila, lamente-me antes.
TITO
Nem lamento, nem repilo. Respondo... depois responderei. Entretanto, acalme os seus transportes e consinta que eu me retire...
EMÍLIA
Ah! vejo que não me ama.
TITO
Não é culpa minha... Mas que é isso, minha senhora? Acalme-se... eu vou sair... a prolongação desta cena seria sobremodo desagradável e inconveniente. Adeus!
Cena X
EMÍLIA, só, depois MARGARIDA
EMÍLIA
Saiu! É verdade! Não me ama... não me pode amar... (silêncio) Fui talvez imprudente! Mas o coração... oh! meu coração!
MARGARIDA
(entrando)
Que tem o Tito que me tirou o Ernesto do braço e lá saiu com ele? EMÍLIA
Saíram ambos?
MARGARIDA
(indo à janela)
Olha, lá vão eles...
EMÍLIA
(idem)
É verdade.
MARGARIDA
O Tito tira um papel do bolso e mostra a Ernesto.
EMÍLIA
(olhando)
Que será?
MARGARIDA
Mas que aconteceu?
EMÍLIA
Aconteceu o que não prevíamos...
MARGARIDA
É invencível?
EMÍLIA
Por desgraça minha; mas há coisa pior...
MARGARIDA
Pior?...
EMÍLIA
Escuta; és quase minha irmã; não te posso ocultar nada.
MARGARIDA
Que ar agitado!
EMÍLIA
Margarida, eu o amo!
MARGARIDA
Que me dizes?
EMÍLIA
Isto mesmo. Amo-o doidamente, perdidamente, completamente. Procurei até agora vencer esta paixão, mas não pude; agora mesmo que, por vãos preconceitos, tratava de ocultar-lhe o estado do meu coração, não pude; as palavras saíram-me dos lábios insensivelmente... Declarei-lhe tudo...
MARGARIDA
Mas como se deu isto?
EMÍLIA
Eu sei! Parece que foi castigo. Quis fazer fogo e queimei-me nas mesmas chamas. Ah! não é de hoje que me sinto assim. Desde que os seus desdéns em nada cederam, comecei a sentir não sei o quê; ao princípio despeito, depois um desejo de triunfar, depois uma ambição de ceder tudo contanto que tudo ganhasse; afinal, nem fui senhora de mim. Era eu quem me sentia doidamente apaixonada e lho manifestava, por gestos, por palavras, por tudo; e mais crescia nele a indiferença, mais crescia o amor em mim. Hoje não pude, declarei-me.
MARGARIDA
Mas estás falando séria?
EMÍLIA
Olha antes para mim.
MARGARIDA
Pois será possível? Quem pensara?...
EMÍLIA
A mim própria parece impossível; mas é mais que verdade...
MARGARIDA
E ele?
EMÍLIA
Ele disse-me quatro palavras indiferentes, nem sei o que foi, e retirou-se... MARGARIDA
Resistirá?
EMÍLIA
Não sei.
MARGARIDA
Se eu adivinhara isto não te animaria naquela malfadada idéia.
EMÍLIA
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877