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#Contos#Literatura Brasileira

A Pianista

Por Machado de Assis (1886)

Tomás lembrara uma vez a necessidade de visitar com Malvina a casa paterna. Malvina, porém, recusou, e quando as instâncias de Tomás a obrigaram a uma declaração mais peremptória, declarou ela positivamente que a continuação das suas visitas poderia parecer a Tibério Valença uma pretensão ao esquecimento do passado e aos conchegos do futuro.

— Melhor é, disse ela, não irmos; antes passemos por descuidados que por ávidos ao dinheiro de teu pai.

— Meu pai não pensará isso, disse Tomás.

— Pode pensar...

— Creio que não... Meu pai está mudado: é outro. Ele já te reconhece; não te fará injustiça.

— Está bom, veremos depois.

E depois desta conversa nunca mais se falou nisso, sendo que Tomás não encontrou na resistência de Malvina senão um motivo mais para amá-la e respeitá-la.

* * *

Tibério Valença, desenganado a respeito da expectativa em que estava, resolveu ir um dia em pessoa visitar a nora.

Era isto nem mais nem menos o reconhecimento solene de um casamento que desaprovara. Esta consideração, tão intuitiva em si, não se apresentou ao espírito de Tibério Valença.

Malvina estava só quando à porta parou o carro de Tibério Valença. Esta visita inesperada causou-lhe verdadeira surpresa.

Tibério Valença entrou com um sorriso nos lábios, sintoma de bonança do espírito, que não escapou à ex-professora de piano.

— Não me querem ir ver, venho eu vê-los. Onde está meu filho?

— Na repartição.

— Quando volta?

— Às três e meia.

— Já não posso vê-lo. Há muitos dias que ele não vai. Quanto à senhora, creio que decididamente nunca mais lá volta...

— Não tenho podido...

— Por quê?

— Ora, isso não se pergunta a uma dona-de-casa.

— Então tem muito que fazer?...

— Muito.

— Oh! mas nem meia hora pode dispensar? E que tanto trabalho é esse? Malvina sorriu-se.

— Como lhe hei de explicar? Há tanta coisa miúda, tanto trabalho que não aparece, enfim coisas de casa. E se nem sempre estou ocupada, estou muitas vezes preocupada, e outras simplesmente cansada...

— Creio que um bocadinho mais de vontade...

— Falta de vontade? Não creia nisso...

— É ao menos o que parece.

Houve um momento de silêncio. Malvina, para mudar o rumo da conversação, perguntou a Tibério como se achava e se não tinha receios da recaída.

Tibério Valença respondeu, com ar de preocupação, que se achava bom e que não tinha receios de nada, antes se achava esperançado de gozar ainda longa vida e boa saúde. — Tanto melhor, disse Malvina.

Tibério Valença, sempre que Malvina se distraía, corria os olhos em redor da sala para examinar o valor dos móveis e avaliar por eles a posição do filho.

Os móveis eram singelos e sem essa profusão e multiplicidade dos móveis das salas abastadas. O chão tinha um palmo de palhinha ou uma fibra de tapete. O que se destacava era um rico piano, presente de alguns discípulos, feito a Malvina no dia em que esta se casou.

Tibério Valença, contemplando a modéstia dos móveis da casa de seu filho, era levado a uma comparação forçada entre eles e os de sua casa, onde o luxo e o gosto davam as mãos.

Depois deste exame minucioso, interrompido pela conversação que continuava sempre, Tibério Valença deixou cair um olhar sobre uma pequena mesa ao pé da qual se achava Malvina.

Sobre essa mesa estavam umas roupas de criança.

— Cose para fora? perguntou Tibério Valença.

— Não, por que pergunta?

— Vejo ali aquela roupa...

Malvina olhou para o lugar indicado pelo sogro.

— Ah! disse ela.

— Que roupa é aquela?

— É de meu filho.

— De seu filho?

— Ou filha; não sei.

— Ah!

Tibério Valença olhou fixamente para Malvina, e quis falar. Mas causou-lhe tal impressão a serenidade daquela mulher cuja família se ia aumentar e que olhava tão impavidamente para o futuro, que a voz se lhe embargou e não pôde pronunciar palavra. — Efetivamente, pensava ele, aqui há alguma coisa especial, alguma força sobre-humana que sustenta estas almas. Será isto o amor?

Tibério Valença dirigiu algumas palavras à nora e saiu deixando lembranças para o filho e instando para que ambos fossem visitá-lo.

Poucos dias depois da cena que acabamos de contar chegaram ao Rio de Janeiro Elisa e seu marido.

Vinham estabelecer-se definitivamente na corte.

A primeira visita foi para o pai, de cuja moléstia tinham sabido na província. Tibério Valença recebeu-os com grande alvoroço. Beijou a filha, abraçou o genro, com uma alegria infantil.

* * *

Nesse dia houve em casa grande jantar, para o qual não se convidou ninguém além dos que habitualmente freqüentavam a casa.

O marido de Elisa, antes de pôr casa, devia ficar em casa do sogro, e quando comunicou este projeto a Tibério Valença, este acrescentou que não se iriam mesmo sem aceitar um baile.

O aditamento foi aceito.

O baile foi marcado para o sábado próximo, isto é, exatamente oito dias depois. Tibério Valença estava contentíssimo.

Tudo andou logo na maior azáfama. Tibério Valença queria provar com o esplendor da festa o grau de estima em que tinha a filha e o genro.

Desde então filha e genro, genro e filha, tais foram os dois pólos em que volteava a imaginação de Tibério Valença.

Enfim o dia de sábado chegou.

(continua...)

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