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#Epopeias#Literatura Brasileira

Feitos de Mem de Sá

Por José de Anchieta (1563)

encheram o leito do rio, e dobraram as cervizes altivas

à força de golpes, e se lhes abrandaram as iras.

Mandam o chefe das armadas lançar mão dos remos velozes

a toda pressa, e abrir vela aos ventos propícios

sem demora. Deixam a um tempo a praia e na praia

o chefe estendido. As naus deslizam do rio

para o mar, varrem com a popa a superfície do pego,

e dirigem-se ao porto dos cristãos, que em perigo de morte

o governador geral mandara auxiliar da cidade

não acabasse com eles o feroz inimigo dos brancos.

Eles, depois dos longos trabalhos da guerra e da fome,

depois de mil ameaças do inimigo e perigos de morte,

reconhecem enfim, na curva do mar, os navios amigos.

Revigorados de nova esperança, erguem as armas ao alto,

os peitos acabrunhados alijam cuidados que pesam.

Mal puderam ouvir de perto a voz querida de amigos,

e a notícia dos combates horrendos e das morte sangrenta

do chefe, os corações soçobram de dor repentina,

transbordam as lágrimas pelas faces a mães e esposos,

e deixam escapar do peito entre fundos soluços

estas queixas desoladoras: “E nós, jovem ilustre,

nós, entre mortes tão cruéis, escapamos incólumes!...

Não eras tu o repouso suave que teu pai preparava

para a sua velhice? Tu, para nos proteger a cabeça,

entregaste a tua à morte sangrenta, aceitaste

pelo nosso descanso os duros trabalhos da guerra.

Valia tanto, ilustre chefe, nosso bem comprá-lo

com tão duras feridas tuas e tanta amargura

de teu amado pai? que sofras tu morte horrorosa,

por nossa vida? que sejas pasto do cruel inimigo,

e não nos confranjam a nós tuas chagas doridas,

nem esse sangue que te escorre pela fronte robusta?

Nós, esquecidos de tanto sacrifício? Tanto nos acobarda

o amor desta luz transitória e a paixão egoísta

de viver, que não nos deixa vingar tua morte

em merecida desforra? Ah! vingar-nos-emos!”

Abalados por tais pensamentos, sinais de funda tristeza

deram todos . Prestam as últimas honras ao chefe

e aos companheiros mortos, e as exéquias preparam.

Mães piedosas, virgens inocentes, meninos e adultos,

velhos vergados ao peso dos anos, dirigem-se à igreja.

Junto do altar, coberto e velado por pano de luto,

está uma essa: bela faixa branca em forma de cruz

abraça o ataúde em todo o seu comprimento.

Cobrem-se de panos pretos também os altares sagrados.

Círios em profusão enchem as luzes dos templos.

Segundo o costume dos cristãos recitam o símbolo

dos Apóstolos e os mandamentos: então o ministro sagrado

envergando paramentos negros oferece preces e súplicas

ao Pai celeste e imola qual cordeiro inocente,

o corpo de Jesus, vítima das culpas dos homens,

que de mãos e de pés os cravos cruéis trespassaram

e a morte abateu sanguinolentemente.

Daqui e dali, gemidos e soluços ressoam, e prantos

entrecortados por gritos de mulheres; lágrimas correm

em rios pelas faces, em altas vozes invocam a bondade

do Pai onipotente. Justamente sentidos , abalam

com súplicas os excelsos palácios celestes.

Os próprios homens deixam correr pelas faces esquálidas

grossas bagas. Arrancam suspiros do fundo do peito

e com merecidas honras, os tristes funerais acompanham.

Cumpre o sacerdote quanto exige o rito piedoso:

oferece pelas almas do chefe e colegas os supremos sufrágios

e ajudando-os com uma última prece, faz o giro da essa,

asperge-a com a água santa e pronuncia as derradeiras

palavras, pedindo o descanso deles na eternidade serena.

A lua resplendente erguera por detrás do oceano

seu rosto e completara uma só vez o disco brilhante.

Os guerreiros que tão duros combates e riscos tinham corrido

por terra e por mar, retemperam exaustos os membros

e refazem as forças. Cicatrizam as feridas abertas

pelas setas velozes, essas feridas inumeráveis

recebidas ao lado do chefe, enquanto com as espadas

dizimavam o inimigo. Todos os cidadãos e tropas amigas,

num só coração e num só grito, arrojam-se à guerra

jurando vingar a morte cruel de Fernão, o valente,

e aniquilar as hordas selvagens que cercavam a cidade.

O inimigo erguera junto aos muros vastas trincheiras,

e outras fortificações. Reunira inumerável exército,

para desafogar sua raiva louca e ódio descomedido,

exterminar o povo cristão em sangrenta matança

e saciar as negras fauces e os ventres sedentos de sangue.

Sem perda de tempo dirigem à força de remos

as rápidas canoas contra a corrente. Distendem-se

os duros braços e os músculos saltam. Sulcando

as ondas contrárias, voam e em porfiada corrida

atracam no local inimigo, e de um salto ágil

os pelotões fogosos pulam das barcas, palmilham

os litorais adversos, com altos brados invocam

o poder onipotente e arrojam-se contra o inimigo.

Nem valas, nem homens sustêm o assalto dos nossos

ainda que os embarque e fira a chuva das flechas.

Encarniçam-se, e rompendo por sendas impraticáveis,

abatem quanto se lhes ergue diante e acossam os bárbaros,

crivando-os de feridas e juncando de mortos o campo.

Também os nossos levam o peito varado de setas.

(continua...)

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