Por Machado de Assis (1865)
Li esta carta, reli, e... dir-to-ei, Carlota? beijei-a. Beijei-a repetidas vezes com alma, com paixão, com delírio. Eu amava! eu amava!
Então houve em mim a mesma luta, mas estava mudada a situação dos meus sentimentos. Antes era o coração que fugia à razão, agora a razão fugia ao coração.
Era um crime, eu bem o via, bem o sentia; mas não sei qual era a minha fatalidade, qual era a minha natureza; eu achava nas delícias do crime desculpa ao meu erro, e procurava com isso legitimar a minha paixão.
Quando meu marido se achava perto de mim eu me sentia melhor e mais corajosa...
Paro aqui desta vez. Sinto uma opressão no peito. É a recordação de todos estes acontecimentos.
Até domingo.
Capítulo VI
Seguiram-se alguns dias às cenas que eu te contei na minha carta passada.
Ativou-se entre mim e Emílio uma correspondência. No fim de quinze dias eu só vivia do pensamento dele.
Ninguém dos que freqüentavam a nossa casa, nem mesmo tu, pôde descobrir este amor. Éramos dous namorados discretos ao último ponto.
É certo que muitas vezes me perguntavam por que é que eu me distraía tanto e andava tão melancólica; isto chamava-me à vida real e eu mudava logo de parecer.
Meu marido sobretudo parecia sofrer com as minhas tristezas.
A sua solicitude, confesso, incomodava-me. Muitas vezes lhe respondia mal, não já porque eu o odiasse, mas porque de todos era ele o único a quem eu não quisera ouvir destas interrogações.
Um dia voltando para casa à tarde chegou-se ele a mim e disse: - Eugênia, tenho uma notícia a dar-te.
- Qual?
- E que te há de agradar muito.
- Vejamos qual é.
- É um passeio.
- Aonde?
- A idéia foi minha. Já fui ao Emílio e ele aplaudiu muito. O passeio deve ser domingo à Gávea; iremos daqui muito cedinho. Tudo isto, é preciso notar, não está decidido. Depende de ti. O que dizes?
- Aprovo a idéia.
- Muito bem. A Carlota pode ir.
- E deve ir, acrescentei eu; e algumas outras amigas.
Pouco depois recebias tu e outras um bilhete de convite para o passeio.
Lembras-te que lá fomos. O que não sabes é que nesse passeio, a favor da confusão e a distração geral, houve entre mim e Emílio um diálogo que foi para mim a primeira amargura de amor.
- Eugênia, dizia ele dando-me o braço, estás certa de que me amas? - Estou.
- Pois bem. O que te peço, nem sou eu que te peço, é o meu coração, é o teu coração que te pedem, um movimento nobre e capaz de nos engrandecer aos nossos próprios olhos. Não haverá um recanto no mundo em que possamos viver, longe de todos e perto do céu?
- Fugir?
- Sim!
- Oh! isso nunca!
- Não me amas.
- Amo, sim; é já um crime, não quero ir além.
- Recusas a felicidade?
- Recuso a desonra.
- Não me amas.
- Oh! meu Deus, como respondê-lo? Amo, sim; mas desejo ficar a seus olhos a mesma mulher, amorosa é verdade, mas até certo ponto... pura.
- O amor que calcula, não é amor.
Não respondi. Emílio disse estas palavras com uma expressão tal de desdém e com uma intenção de ferir-me que eu senti o coração bater-me apressado, e subir-me o sangue ao rosto.
O passeio acabou mal.
Esta cena tornou Emílio frio para mim; eu sofria com isso; procurei torná-lo ao estado anterior; mas não consegui.
Um dia em que nos achávamos a sós, disse-lhe:
- Emílio, se eu amanhã te acompanhasse, o que farias?
- Cumpria essa ordem divina.
- Mas depois?
- Depois? perguntou Emílio com ar de quem estranhava a pergunta.
- Sim, depois? continuei eu. Depois quando o tempo volvesse não me havias de olhar com desprezo?
- Desprezo? Não vejo...
- Como não? Que te mereceria eu depois?
- Oh! esse sacrifício seria feito por minha causa, eu fora covarde se te lançasse isso em rosto.
- Di-lo-ias no teu íntimo.
- Juro que não.
- Pois a meus olhos é assim; eu nunca me perdoaria esse erro.
Emílio pôs o rosto nas mãos e pareceu chorar. Eu que até ali falava com esforço, fui a ele e tirei-lhe o rosto das mãos.
- Que é isto? disse eu. Não vês que me fazes chorar também?
Ele olhou para mim com os olhos rasos de lágrimas. Eu tinha os meus úmidos.
- Adeus, disse ele repentinamente. Vou partir.
E deu um passo para a porta.
- Se me prometes viver, disse-lhe, parte; se tens alguma idéia sinistra, fica.
Não sei o que viu ele no meu olhar, mas tomando a mão que eu lhe estendia beijou-a repetidas vezes (eram os primeiros beijos) e disse-me com fogo:
- Fico, Eugênia!
Ouvimos um ruído fora. Mandei ver. Era meu marido que chegava enfermo. Tinha tido um ataque no escritório. Tornara a si, mas achava-se mal. Alguns amigos o trouxeram dentro de um carro.
Corri para a porta. Meu marido vinha pálido e desfeito. Mal podia andar ajudado pelos amigos.
Fiquei desesperada, não cuidei de mais cousa alguma. O médico que acompanhara meu marido mandou logo fazer algumas aplicações de remédios. Eu estava impaciente; perguntava a todos se meu marido estava salvo.
Todos me tranqüilizavam.
Emílio mostrou-se pesaroso com o acontecimento. Foi a meu marido e apertou-lhe a mão.
Quando Emílio quis sair, meu marido disse-lhe:
- Olhe, sei que não pode estar aqui sempre; peço-lhe, porém, que venha, se puder, todos os dias.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Confissões de uma Viúva Moça. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1865.