Por Machado de Assis (1883)
Os vivos são os que meu amigo Valentim designa pelo nome de medalhões. Em primeiro lugar, há ainda um certo número de espíritos bons, fortes e esclarecidos que não merecem tal designação. Em segundo lugar, se os medalhões são numerosos, pergunto eu ao meu amigo: — Também eles não são filhos de Deus? Então, porque um homem é medíocre, não pode ter ambições e deve ser condenado a passar os seus dias na obscuridade?
Quer me parecer que a idéia do meu amigo é da mesma família da de Platão, Renan e Shopenhauer, uma forma aristocrática de governo, composto de homens superiores, espíritos cultos e elevados, e nós que fôssemos cavar a terra. Não! mil vezes não! A democracia não gastou o seu sangue na destruição de outras aristocracias, para acabar nas mãos de uma oligarquia ferrenha, mais insuportável que todas, porque os fidalgos de nascimento não sabiam fazer epigramas, e nós os medíocres e medalhões padeceríamos nas mãos dos Freitas e Alencares, pare não falar dos vivos
E, depois, onde é que o meu Valentim compra as suas balanças? Ignora ele que a felicidade humana e social depende da repartição eqüitativa dos ônus e das vantagens? Perante qual princípio e aceitável essa teoria, de dar tudo a uns e nada aos outros? Lástima que Teixeira de Freitas não tivesse uma cadeira de legislador. Mas, com todos os diabos! não se pode ao mesmo tempo votar as leis e consolidá-las. Que um as consolide, e tanto melhor, se a obra sair perfeita mas que outros as façam; que o Sr. José Zózimo, que não consolidou nada, levante a voz no areópago da nação. Ele não paga imposto? Não está no gozo dos direitos civis e políticos? Que lhe falta, pois? Não inventa, é verdade; mas o meu amigo esquece que tudo ou quase tudo está inventado:—a pólvora, a imprensa, o telescópio.
Portanto, emende a sua filosofia social, e venha tomar chá comigo.
1884
[28]
[10 janeiro]
Hão de ter paciência; mas, se cuidam que a bala hoje é de quem a assina, enganam-se. A bala é de um finado, e um velho finado, que é pior; é de Drummond, o diplomata. Se o leitor pode desviar os olhos das graves preocupações de momento, para algumas coisas do passado, venha ler dois ou três pedaços da memória inédita que a Gazeta Literária está publicando. A memória, realmente, trata de coisas antediluvianas, coisas de 1822, mas, em suma, 1822 existiu como este ano de 1884 há de um dia ter existido; e se qualquer de nós fala de seu avó, que os outros não conheceram, falemos um pouco de Drummond, José Bonifácio, D. João VI e D. Pedro.
Diabo! Mas, pelos modos, não é uma bala de estalo, é uma bala de artilharia! Não, não; tudo o que há mais bala de estalo. Eu só extraio de Memória aquilo que o velho Drurmmond escreveu prevendo a Gazeta de Notícias e os autores desta nossa confeitaria diária. Não é que a Memória não seja toda curtíssima de anedotas do tempo; mas os que se interessam por essas coisas, são naturalmente em pequeno número, e eu só amolarei a maioria dos meus semelhantes, quando não der por isso; de propósito, nunca.
Assim, por exemplo, credo que ao leitor de hoje importa pouco saber, se em 1817, dadas as denúncias contra os maçons, houve grandes patrulhas e tropas nos quartéis, só pare prender o maçon Luís Prates, que morava na Rua da Alfândega. Creio mesmo que não lhe interessa este juízo de Drummond acerca do oficial encarregado de prender aquele indivíduo: "era o Coronel Gordilho(diz o velho diplomata) que depois foi pelo merecimento da sua ignorância Marquês de Jacarepaguá e senador pelo império."
Entretanto, esta expressão—merecimento da sua ignorância—é de bala de estalo. Vamos, porém, a uma anedota desse mesmo ano de 1817, galantíssima, uma verdadeira bala de estalo, feita pelo rei D. João VI, que também tinha momentos de bom humor:
(continua...)
ASSIS, Machado de. Balas de estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1883–1886.