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#Peças de teatro#Literatura Brasileira

As Forças Caudinas

Por Machado de Assis (1877)

Sim; é natural que se embeveça dez vezes por dia na lembrança dos dois maridos que já exportou para o outro mundo... à espera de exportar o terceiro.

SEABRA

Não é dessas...

TITO

Afianças?

SEABRA

Quase que posso afiançar.

TITO

Ah! meu amigo, toma o conselho de um tolo: nunca afiances nada, principalmente em tais assuntos. Entre a prudência discreta e a cuja confiança não é lícito duvidar, a escolha está decidida nos próprios termos da primeira. O que podes tu afiançar a respeito da Emília? Não a conheces melhor do que eu. Há quinze dias que nos conhecemos e eu já lhe leio no interior; estou longe de atribuir-lhe maus sentimentos; mas, tenho a certeza de que não possui as raríssimas qualidades que são necessárias à exceção. Que sabes tu?

SEABRA

Realmente, eu não sei nada.

TITO

(à parte)

Não sabe nada!

SEABRA

Falo pelas minhas impressões. Parecia-me que um casamento entre vocês ambos não vinha fora de propósito.

TITO

(pondo o chapéu)

Se me falas outra vez em casamento, saio.

SEABRA

Pois só a palavra?...

TITO

A palavra, a idéia, tudo.

SEABRA

Entretanto admiras e aplaude o meu casamento...

TITO

Ah! eu aplaudo nos outros muita coisa de que não sou capaz de usar... Depende da vocação...

Cena VIII

Os mesmos, MARGARIDA, EMÍLIA

EMÍLIA

O que é que depende de vocação?

TITO

Usar chapéu do Chile. Eu diria que este gênero de chapéus fica muito bem em Ernesto, mas que eu não sou capaz de usá-lo; porque... porque depende da vocação. Não pensa comigo que contra a vocação não há nada capaz?

EMÍLIA

Plenamente.

TITO

(a Seabra)

Toma lá!...

SEABRA

(à parte a Tito)

Velhaco!... (alto a Margarida) Margarida, vamos embora?

MARGARIDA

Já para casa?

SEABRA

Vamos primeiro ao tio e depois para casa.

EMÍLIA

Sem passarem por aqui na volta?

MARGARIDA

Ele é quem manda.

SEABRA

Se não for muito o cansaço...

EMÍLIA

Ora, o dia está fresco e sombrio; é perto, e o caminho é excelente. Se não me baterem à porta ficamos mal para sempre.

SEABRA

Ah! isto não... (a Tito) Também vens?

TITO

(de chapéu na mão)

Também.

EMÍLIA

E assim me deixa só?

TITO

Tem muito empenho em que eu fique?

EMÍLIA

Agrada-me a sua conversa.

TITO

Fico. Até logo.

Cena IX

TITO, EMÍLIA

TITO

V. Exa. disse agora uma falsidade.

EMÍLIA

Qual foi?

TITO

Disse que lhe era agradável a minha conversa. Ora, isso é falso como tudo quanto é falso...

EMÍLIA

Quer um elogio?

TITO

Não, falo franco. Eu nem sei como V. Exa. me atura: desabrido, maçante, às vezes chocarreiro, sem fé em coisa alguma, sou um conversador muito pouco digno de ser desejado. É preciso ter uma grande soma de bondade para ter expressões tão benévolas... tão amigas...

EMÍLIA

Deixe esse ar de mofa e...

TITO

Mofa, minha senhora?...

EMÍLIA

Ontem tomei chá sozinha!... sozinha!

TITO

(indiferente)

Ah!

EMÍLIA

Contava que o senhor viesse aborrecer-se urna hora comigo...

TITO

Qual, aborrecer... Eu lhe digo: o culpado foi o Ernesto.

EMÍLIA

Ah! foi ele?...

TITO

É verdade; deu comigo aí em casa de uns amigos, éramos quatro ao todo, rolou a conversa sobre o voltarete e acabamos por formar mesa. Ah! mas foi uma noite completa! Aconteceu-me o que me acontece sempre: ganhei!

EMÍLIA

(triste)

Está bom...

TITO

Pois olhe, ainda assim eu não jogava com pixotes; eram mestres de primeira força; um principiante; até às onze horas a fortuna pareceu desfavorecer-me, mas dessa hora em diante desandou a roda para eles e eu comecei a assombrar... pode ficar certa de que os assombrei. (Emília leva o lenço aos olhos) Ah! é que eu tenho diploma... mas que é isso? Está chorando?

EMÍLIA

(tirando o lenço e sorrindo)

Qual; pode continuar.

TITO

Não há mais nada; foi só isto.

EMÍLIA

Estimo que a noite lhe corresse feliz...

TITO

Alguma coisa...

EMÍLIA

Mas, a uma carta responde-se; por que não respondeu à minha?

TITO

À sua qual?

EMÍLIA

À carta que lhe escrevi pedindo que viesse tomar chá comigo?

TITO

Não me lembro.

EMÍLIA

Não se lembra?

TITO

Ou, se recebi essa carta, foi em ocasião que a não pude ler, e então esqueci-a em algum lugar...

EMÍLIA

É possível; mas é a última vez...

TITO

Não me convida mais para tomar chá?

EMÍLIA

Não. Pode arriscar-se a perder distrações melhores.

TITO

Isso não digo; V. Exa. trata bem a gente e em sua casa passam-se bem as horas... Isto é com franqueza. Mas então tomou chá sozinha? E o coronel?

EMÍLIA

Descartei-me dele. Acha que ele seja divertido?

TITO

Parece que sim... É um homem delicado; um tanto dado às paixões, é verdade, mas sendo esse um defeito comum, acho que nele não é muito digno de censura.

EMÍLIA

O coronel está vingado.

TITO

De quê, minha senhora?

EMÍLIA

(depois de uma pausa)

De nada! (levanta-se e dirige-se ao piano)

TITO

(com ar indiferente)

Ah!

EMÍLIA

Vou tocar; não aborrece?

TITO

V. Exa. é senhora de sua casa...

EMÍLIA

Não é essa a resposta.

TITO

Não aborrece, não... pode tocar. (Emília começa algum pedaço musical melancólico) V. Exa. não toca alguma coisa mais alegre?

EMÍLIA

(parando)

Não... traduzo a minha alma. (levanta-se)

TITO

Anda triste?

EMÍLIA

Que lhe importam as minhas tristezas?

TITO

(continua...)

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