Por Machado de Assis (1886)
— Estou.
— Ainda bem.
— Há muitos dias que está aqui?
— Há alguns.
— Nada sei do que se tem passado. Parece que acordo de um longo sono. Que tive eu? — Delírios e constantes sonolências.
— Sim?
— É verdade.
— Mas estou melhor, estou salvo?
— Está.
— Dizem os médicos?
— Dizem e vê-se logo.
— Ah! graças a Deus.
Tibério Valença respirou como um homem que aprecia a vida no grau máximo. Depois, acrescentou:
— Ora, quanto trabalho teve comigo!...
— Nenhum...
— Como nenhum?
— Era preciso haver alguém que dirigisse a casa. Bem sabe que as mulheres são essencialmente donas de casa. Não quero encarecer o que fiz; eu pouco fiz, fi-lo por dever. Mas quero ser leal declarando qual foi o pensamento que me trouxe aqui. — A senhora tem bom coração.
Tomás entrou neste momento.
— Oh! meu pai! disse ele.
— Adeus, Tomás.
— Está melhor?
Estou. Sinto e dizem os médicos que estou melhor.
— Está, sim.
— Estava a agradecer à tua mulher...
Malvina acudiu logo:
— Deixemos isso para depois.
Desde o dia em que Tibério Valença teve este diálogo com a nora e o filho a cura foi-se operando gradualmente. No fim de um mês entrou Tibério Valença em convalescença. Estava excessivamente magro e fraco. Só podia andar apoiado a uma bengala e ao ombro de um criado. Tomás substituiu muitas vezes o criado a chamado do próprio pai. Neste ínterim foi Tomás contemplado na pretensão que tinha a um emprego público. Progrediu a convalescença do velho, e os facultativos aconselharam uma mudança para o campo.
Faziam-se os preparativos da mudança quando Tomás e Malvina anunciaram a Tibério Valença que, dispensando-se agora os seus cuidados, e devendo Tomás entrar no exercício do emprego que obtivera, tornava-se necessária a separação. — Então não me acompanham? perguntou o velho.
Ambos repetiram as razões que tinham, procurando do melhor modo não ofender a suscetibilidade do pai e do enfermo.
Pai e enfermo cederam às razões e efetuou-se a separação no meio dos protestos reiterados de Tibério Valença que agradecia d’alma os serviços que os dois lhe haviam prestado.
Tomás e Malvina seguiram para casa, e o convalescente partiu para o campo. * * *
A convalescença de Tibério Valença não teve incidente algum.
No fim de quarenta dias estava pronto para outra, como se diz popularmente, e o velho com toda a criadagem voltou para a cidade.
Não fiz menção de visita alguma da parte dos parentes de Tibério Valença durante a moléstia deste, não porque eles não tivessem visitado o parente enfermo, mas porque essas visitas não trazem circunstância alguma nova no caso.
Todavia pede a fidelidade histórica que eu as mencione agora. Os parentes, últimos que restavam à família Valença, reduziam-se a dois velhos primos, uma prima e um sobrinho, filho desta. Estas criaturas foram algum tanto assíduas durante o perigo da moléstia, mas escassearam as visitas desde que tiveram ciência de que a vida de Tibério não corria risco.
Convalescente, Tibério Valença não recebeu uma só visita desses parentes. O único que o visitou algumas vezes foi Tomás, mas sem a mulher.
Estando completamente restabelecido e tendo voltado à cidade, a vida da família continuou a mesma que anteriormente à moléstia.
Esta circunstância foi observada por Tibério Valença. Apesar da sincera gratidão com que ele acolheu a nora apenas tornara a si, Tibério Valença não pôde afugentar do espírito um pensamento desonroso para a mulher do seu filho. Dava o desconto necessário às qualidades morais de Malvina, mas interiormente acreditava que o procedimento dela não fosse isento de cálculo.
Este pensamento era lógico no espírito de Tibério Valença. No fundo do enfermo agradecido havia o homem calculista, o pai interesseiro, que olhava tudo pelo prisma estreito e falso do interesse e do cálculo, e a quem parecia que não se podia fazer uma boa ação sem laivos de intenções menos confessáveis.
Menos confessáveis é paráfrase do narrador; no fundo, Tibério Valença admitia como legítimo o cálculo dos dois filhos.
Tibério Valença imaginava que Tomás e Malvina, procedendo como procederam, tinham tido mais de um motivo que os determinasse. Não eram só, no espírito de Tibério Valença, o amor e a dedicação filial; era ainda um meio de ver se lhe abrandavam os rancores, se lhe armavam à fortuna.
Nesta convicção estava, e com ela esperava a continuação dos cuidados oficiosos de Malvina. Imagine-se qual não foi a surpresa do velho, vendo que cessada a causa das visitas dos dois, causa real que ele tinha por aparente, nenhum deles apresentou o mesmo procedimento anterior. A confirmação seria se, pilhada a aberta, Malvina aproveitasse para fazer da sua presença em casa de Tibério Valença uma necessidade. Isto pensava o pai de Tomás, e pensava, neste caso, com acerto.
* * *
Correram dias e dias, e a situação não mudou.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A pianista. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, n. 9-10, set.-out. 1866. (Publicado em folhetins, assinado por J.J.).