Por José de Anchieta (1563)
depois que a tempestade repentina despejou suas iras,
chuvas vergastando montes e bosques e rasgando caminhos
às águas que correm a se ajuntar: então ele, soberbo
de tanta riqueza, se arroja e arranca à terra das margens
troncos gigantes, rola em redemoinho pedras enormes,
imitando ora o rumor soturno das ondas
ora o rolar do trovão nas alturas celestes.
Assim a turba imensa enchia já a cidadela
e reanimadas pelo socorro, em luta desigual, apertava
uns poucos de heróis, com o furor de vingança
que lhes incutia a derrota e a morte dos seus.
O alvo principal de seus golpes, incessantes e rijos,
é o jovem chefe, que mais e mais se enfurece, admirado
de que o inimigo cobre de repente tanta coragem e força:
não havia, há pouco, nesses peitos tanto denodo
nesses braços tanto vigor... A custo percebeu finalmente
que os seus deserdaram, enquanto ele mergulhava na turba,
inebriado de sangue, olhos na derradeira vitória.
Ao ver-se abandonado, entre os inimigos, com poucos
companheiros, entendendo ser inútil lutar contra tantos,
retira-se dos arraiais e pouco a pouco recua
na direção do rio, para entrar com seus bravos
nas barcas que aí estariam presas. Mas ai! os cobardes
menosprezaram as ordens e a vida do chefe e largaram
para longe da margem a armada, cederam
a um temor vergonhoso: eis o chefe desses cobardes.
O herói, em vão magnânimo, ao ver que os companheiros
levaram para longe os barcos e que a turba inimiga,
em linha de batalha e entre gritos de guerra, começa
a apertá-los, brada: “Para onde corremos, colegas?
Já não nos resta esperança alguma! O inimigo
nos cerca de toda a parte, de toda a parte o oceano!
A terra nos falta! buscaremos a armada, cortando
com o peito as ondas? para onde nos dirigir-nos no aperto
presente? Pois, rompamos à ponta de espada essas hordas!
Paira sobre a nós a morte? — que paire! Oh! que belo
deixar por Deus as vidas caras na arena sangrenta
e comprar com esse sangue a vida de muitos!”
Disse, e logo (pois já o ataque dos índios não dava
lugar a demora), à invocação do nome de Cristo.
com os colegas se arroja contra os selvagens, postado
a arrastar na própria morte os corpos de mil inimigos
e a rasgar com o punhal reluzente mil feridas sangrentas.
Os inimigos se apinham ao redor e o carregam com gritos
de terror e com flechas: não lhes dá a horda descanso,
como caçadores à volta do leão que freme asseteado:
ele a raivar ruge horrendamente e feroz ameaça
com o olhar torvo, ora este, ora aquele, impertérrito
rasga com a boca em sangue os corpos que alcança:
Eles o apertam, fincam-lhe lanças nas costas, nos flancos
à porfia, até que todo roto de feridas sucumbe
e a terra treme ao baque dos membros robustos.
Assim o enxame dos inimigos em cerco cerrado
estreitou o jovem: esse o fere com a clava, aquele com setas
e em vão ele multiplica esforços. Em algazarra se arrojam
sobre ele. Sem tréguas, apertam-no daqui e dali, insaciáveis.
Redobram os golpes: as flechas lançadas de todos os lados
já o cobrem todo, as armas tinem, rompe-se a malha
da couraça, já não resiste a tantos golpes o escudo.
Copioso lhe inunda o corpo e por completo
o abandonaram as forças; a sede lhe queima a garganta
e o pobre exala pelos pulmões a alma ofegante.
Já tem o herói o rijo peito crivado de inúmeras setas,
o sangue o cobre todo e lhe empana a beleza
dos membros. A praia tremeu à sua queda. Tombando
os olhos moribundos se cravaram na altura.
As próprias selvas e rochas e montes vizinhos e rios,
chorando ao som das águas cristalinas, o viram
cair ao peso das chagas, e arrancaram dolorosos gemidos.
Ó venturoso moço, prostrado na arena sangrenta
depois de devastar valente as hordas selvagens,
bela morte juncou teu sepulcro de mil setas e corpos.
Não te assediou o peito a fome do ouro nem da vaidade;
mas a paixão imensa da glória divina
e a honra imaculada de Cristo te imola
nesse altar, para que sejam tuas feridas a vida de muitos.
Vencido pelo amor da pátria e liberdade dos teus,
vergaste a cabeça ante a morte, sob a espada inimiga
tombando na juventude em flor, primavera da vida.
Sem tremer, desprezaste a terra pelo bem dos amigos,
deixaste escapar, pelas chagas abertas, a vida.
Grande jovem, eis tua glória! os séculos todos
saberão que preferiste morte cruel à desonra
de Deus, da pátria e do pai, e que, desconhecendo
o temor cobarde, expuseste a vida aos maiores perigos
e apagaste, com teu sangue o incêndio da guerra
que surgia ameaçador. Lembrar-se-ão os teus Lusos
e confessarão agradecidos dever-te tal benefício:
graças a tua morte, eles vivem e desfrutam da paz.
Venturoso Jovem, entre os felizes, nas alturas celestes
brilha a tua glória irmanada à glória divina.
Privado embora do sepulcro teu corpo, escondido
embora no seio da terra ou no ventre dos índios,
nada se te dá. Fica-lhes esta glória mesquinha,
depois que as hordas ferozes com sua imensa ruína
juncaram as fortalezas, e com o sangue selvagem
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.