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#Contos#Literatura Brasileira

Conversão de um avaro

Por Machado de Assis (1878)

— Vá lá, disse ele; cupês, não é?

— Justamente; cavalos brancos, arreios finos, cocheiros de libré, coisa bonita. — Mais bonita do que você, é impossível, acudiu o colchoeiro com um ar terno e galante. Outro ósculo que o fez ver estrelas ao meio-dia. Estava decidido que o casamento teria o maior aparato. Gil Gomes reconhecia que a despesa era enorme, e intimamente pensava que era inútil; mas desde que ela queria, toda a discussão estava acabada. Mandou preparar a roupa dele; teve até de sortir-se, porque nada possuía em casa; aposentou os dois velhos rodaques, as três calças de quatro anos. Pôs casa. A viúva guiou-o nessa tarefa difícil; indicou o que ele devia comprar; escolheu ela mesma a mobília, os tapetes, os vasos, as cortinas, os cristais, as porcelanas. As contas chegavam às mãos do colchoeiro rotundas e pavorosas; mas ele pagava, quase sem sentir. Na véspera do casamento, tinha ele deixado de pertencer a este mundo, tão alheado andava dos homens. José Borges aproveitou esse estado de sonambulismo amoroso para lhe pedir duzentos mil-réis emprestados. Coisa miraculosa! Gil Gomes emprestou os. Era verdadeiramente o fim do mundo. Emprestou os duzentos mil-réis, sem fiança, nem obrigação escrita. Isto e a derrota do primeiro Napoleão são os dois fatos mais estrondosos do século.

Casou no dia seguinte. A vizinhança toda sabia já do casamento, mas não podia crer, supunha que era boato, apesar das mil provas que os noveleiros espalhavam de loja em loja... Casou; quem o viu entrar no cupê, ainda hoje duvida se estava sonhando naquele dia.

Uma vez casado, estava passado o Rubicão. A ex-viúva encheu a vida do colchoeiro; ocupou em seu coração o lugar que até então pertencera à libra esterlina. Gil Gomes estava mudado; fora uma larva; passava a borboleta. E que borboleta! A vida solitária da loja dos colchões era agora o seu remorso; ele mesmo ria de si. A mulher, só a mulher, nada mais que a mulher, eis o sonho da vida do colchoeiro; era o modelo dos maridos. Rufina amava o luxo, a vida estrondosa, os teatros, os jantares, os brilhantes. Gil Gomes, que vivera a detestar tudo aquilo, mudou de sentimento e acompanhou as tendências da esposa. De longe em longe tinha um estremecimento na alma. “ Mas um sorriso, um afago de Rufina dissipava as nuvens e atirava o colchoeiro à carreira em que ia. Um ano depois de casado sabia jogar o voltarete e tinha assinatura no teatro. Comprou carro; dava jantares às sextas-feiras; emprestava dinheiro a José Borges de trimestre em trimestre. Circunstância particular: José Borges não lhe pagava nunca. Vieram os anos, e cada ano novo achava-o mais namorado da mulher. Gil Gomes era uma espécie de cachorrinho de regaço. Com ela, ao pé dela, defronte dela, a olhar para ela; não tinha outro lugar nem outra atitude. A bolsa emagreceu; ele engordou. Nos últimos anos, tinha vendido o carro, suspendido os jantares e os teatros, diminuído os empréstimos a José Borges, jogava a bisca a tentos. Quando a miséria chegou, Rufina retirou-se deste mundo. O colchoeiro que já não tinha colchões, acabou a vida servindo de agente em um cartório de escrivão.

(continua...)

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