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#Crônicas#Literatura Brasileira

Bons Dias

Por Machado de Assis (1888)

Censuras não faltam. Já ouvi censurar um dos nossos costumes parlamentares, que justamente mais me comovem; refiro-me ao de levantar a sessão, quando morre algum dos membros da casa. A notícia é dada por um deputado ou senador, que faz um discurso, pondo em relevo as qualidades do finado. Às vezes o defunto não prestou ao Estado o menor serviço; não importa, essa é justamente a beleza do sistema democrático e de igualdade que deve reger, mais que todos os corpos legislativos. Para o parlamento, como para a morte, como para a Constituição, todos são legisladores, todos merecem igual cortesia e piedade.

Os censuradores alegam que este uso não existe em parte nenhuma, fora daqui. O argumento Aquiles (como me diria o citado mestre) é que, tendo sido as câmaras inventadas para tratar dos negócios públicos, a morte de um de seus membros deve pesar menos, muito menos, que o dever social. Daí o discurso em que o presidente deve noticiar a morte, com palavras de saudade, e passar à ordem do dia.

Os preconizadores de hábitos peregrinos chegam a citar o que agora mesmo se deu no parlamento de Inglaterra, quando chegou a notícia da morte do genro da rainha, que não era membro da Câmara dos Lords, mas podia sê-lo, se não fosse imperador da Alemanha. A notícia foi comunicada a ambas as câmaras por um ministro respondeu-lhe o leader da oposição, e continuaram os trabalhos, durando os da Câmara até às duas da madrugada.

Mas quem não vê que nem o exemplo nem o argumento servem ao nosso caso?

Quanto ao exemplo, basta considerar que, posto que o imperador fosse um digno e grande homem, não era membro ele de nenhuma das casas. Fizeram-se mensagens à rainha e à imperatriz.

Além disso, pode ser que, realmente, nesse dia houvesse negócios urgentes. Digo isto, porque o discurso do ministro na Câmara dos Lords, respeitoso e grave, ocupa apenas doze linhas no Times, e o da oposição onze. Na dos Comuns, o do ministro tem nove linhas, o da oposição oito. Cabe ainda notar que ninguém mais falou. Finalmente dali em diante proferiram-se na Câmara dos Comuns. sobre diversos projetos, mais de cinqüenta discursos.

Quanto ao argumento, não há nada mais falho. É certo que as câmaras foram criadas para curar principalmente dos negócios públicos; mas onde é que constituições escritas revogaram leis do coração humano? Podem transtorná-las, e certo' como na dura Inglaterra, na França inquieta, na Itália ambiciosa; mas, tais são as nossas condições. Demais, a veneração dos mortos cimenta a amizade dos vivos.

Ponhamo-nos de acordo. Se a Câmara não faz sessão aos sábados, para acompanhar a dos Comuns, aqui del-rei. Se não acompanha a dos Comuns, e se vai embora, sempre que morre algum membro terá igual censura. Ponhamo-nos de acordo.

Boas noites.

[77]

[19 julho]

BONS DIAS!

Quem me não fez bei de Tunes cometeu um desses erros imperdoáveis, que bradam aos céus.

Suponhamos por um instante que eu era bei de Tunes. Antes de mais nada, tinha prazer de viver em Tunes, que é um dos mais desenfreados desejos. Depois, não entendia nada do que me dissessem, nem os outros me entendiam, e para estabelecer relações cordiais. não há melhor caminho. O Sr. Von Stein fez-se amigo dos índios do Xingu, recitando versos de Goethe.

Não perderia o gosto cá do Rio, porque levaria naturalmente assinaturas de jornais; leria tudo, a questão da revista cível n.° 10.893, o imortal processo da Bíblia, os debates do parlamento os manifestos políticos, etc quando alguma cousa me parecesse dita ou escrita em dialeto barbaresco, teria o meu colégio de intérpretes. que me explicaria tudo.

Não indo mais longe, acabo de ler no discurso do Sr. Senador Leão Veloso uma frase, que, se eu estivesse em Tunes, não lhe perderia o sentido. S. EX a declarou que a vitaliciedade do cargo não o segregou daqueles que o elegeram. Ora, os que o elegeram vão morrendo e hão de ir morrer todos, como já devem ter morrido os que elegeram o Sr. Visconde do Serro Frio. Como é que não há segregação! Há e é uma das vantagens da instituição. Se em 1871 os Srs. Silveira Martins e Barão de Mauá fossem vitalícios, não haveria o recurso aos eleitores, que pôs o Sr. Mauá fora da câmara. Quando o primeiro desafiasse o segundo a irem pleitear ante os eleitores liberais o procedimento de ambos, responderia o Sr. Mauá:

Mas, meu caro colega, os meus eleitores estão mortos. Há dois dias vivia o Bandeira, de Pelotas; pois morreu, aqui está o telegrama, que recebi agora mesmo da família. Sabe que somos velhos conhecidos . . .

Entretanto, aquela frase, que em português dá este resultado, talvez possa ser explicada pelo arábico, mas eu não sou bei de Tunes.

Outras muitas cousas me explicará o colégio de intérpretes. Não as digo todas; mas aqui vai mais uma.

(continua...)

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