Por Machado de Assis (1874)
— Perdoe-me; foi uma centelha do passado que estava debaixo da cinza: apagou-se de todo.
Guiomar, -- sabemos agora que era este o seu nome, -- olhou séria e quieta para o seu mal-aventurado interruptor, dois longos e mortais minutos. Estêvão, confuso e vexado, tinha os olhos em terra; o coração palpitava-lhe com força, como a despedir-se da vida. A situação era em demasia aflitiva e embaraçosa para que se pudesse prolongar mais. Estêvão ia cortejá-la e despedir-se; mas a moça, com um sorriso de mais piedade que afeto, murmurou:
— Está perdoado.
Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a mão, que ele apertou,—- apertou não é bem dito, — em que ele tocou apenas, o mais cerimoniosamente que podia e devia naquela situação.
E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer nada, nem a sair dali, a verem ambos o espectro do passado, aquele tão amargo passado para um deles. Guiomar foi a primeira que rompeu o silêncio, fazendo a Estêvão uma pergunta natural, como não podia deixar de ser naquelas circunstâncias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a mais acerba que ele podia ouvir:
— Há dois anos que nos não vemos, creio eu?
— Há dois anos, murmurou Estêvão abafando um suspiro.
— Já está formado, não? Lembra-me ter lido o seu nome...
— Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha tia...
— Não a vejo há muito tempo, interrompeu Guiomar; eu saí do colégio, logo depois que o senhor seguiu para S. Paulo. Saí a convite da baronesa, minha madrinha, que lá foi buscar-me um dia, alegando que eu já não tinha que aprender, e que me não convinha ensinar.
— Decerto, assentiu Estêvão. — Minha tia é que não deixou nem podia deixar de ensinar; acabou no ofício.
— Acabou?
— Morreu.
— Ah!
— Morreu há cerca de um ano.
— Era uma boa criatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes de silêncio, muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que aprendi... Está admirando esta flor?
Estêvão, apanhado em flagrante delito de admiração, não da flor mas da mão que a sustinha, — uma deliciosa mão, que devia ser por força a que se perdeu da Vênus de Milo, Estêvão balbuciou:
— Com efeito, é linda!
—Há muita flor bonita aqui na chácara. A baronesa tem imenso gosto a estas coisas, e o nosso jardineiro é homem que sabe do seu ofício.
Aquele natural acanhamento da primeira ocasião foi desaparecendo aos poucos, e a conversa veio a ser, não tão familiar, como outrora, mas em todo o caso menos fria do que a princípio estivera. Havia, contudo, uma diferença entre os dois: ele, sem embargo do desembaraço, sentia-se abalado e comovido; ela, porém, vencido o sobressalto do princípio, mostrava-se tranqüila e fria, sempre polida e grave, risonha às vezes, mas de um risonho à flor do rosto, que não lhe alterava a serenidade e compostura.
O sítio e a hora eram mais próprios de um idílio, que de uma fria e descolorida prática. Um céu claro e límpido, um ar puro, o sol a coar por entre as folhas uma luz ainda frouxa e tépida, a vegetação em derredor, todo aquele reviver das coisas parecia estar pedindo uma igual aurora nas almas. Estas é que deviam falar ali a sua língua delas, amorosa e cândida, em vez da outra, cortês, elegante e rígida, que a nenhum deles desprazia, decerto, mas que era muito menos voluntária nos lábios de Estêvão.
Guiomar falava com certa graça, um pouco hirta e pausada, sem viveza, nem calor.
Estêvão, que a maior parte do tempo ficara a ouvi-la, observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação. A Guiomar que ele conhecera e amara era o embrião da Guiomar de hoje, o esboço do painel agora perfeito; faltava-lhe outrora o colorido, mas já se lhe viam as linhas do desenho.
A conversa durou cerca de três quartos de hora, uma migalha de tempo para ele, que desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ela foi a primeira a dizer-lho.
— O senhor fez-me perder muito tempo. Há talvez uma hora que estamos aqui a conversar. Era natural, depois de dois anos. Dois anos! Mas o que não era natural, continuou ela mudando de tom, era atrever-me a falar com um estranho neste deshabillé tão pouco elegante...
— Elegantíssimo, pelo contrário.
— O senhor tem sempre um cumprimento de reserva: vejo que não perdeu o tempo na academia, Vou-me embora. São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara.
— Será aquela senhora que ali está no alto da escada? Perguntou Estêvão. — É ela mesma, respondeu Guiomar. Está à espera que lhe vá dar o braço. E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a mão a Estêvão, dizendo: — Passe bem, senhor doutor, estimei vê-lo.
Estêvão tocou-lhe levemente na mão, fina e macia, e inclinou-se respeitoso. A moça caminhou para casa. Ele acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ela, desta vez a passo acelerado, resvalava por entre as árvores até subir as escadas da casa. Viu-a dar o braço à madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A mão e a luva. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1874.