Por Machado de Assis (1892)
— Sim, mas nem por ser estrangeiro, é título; aquele doutor que ali mora defronte é estrangeiro e não é título.
—Isso é verdade. Então parece-lhe que os habeas corpus não são papéis?
— Papéis são; mas são outros papéis.
A idéia de debênture ficou sendo para mim a mesma cousa que nada, de modo que não compreendia que um senhor andasse com mil debêntures na algibeira, que outro as furtasse, e que ele corresse em busca do ladrão. Acreditei por estar impresso. Depois mostraram--me a lista das cotações. Vi que não se vendem tantas como outrora, nem pelo preço antigo, mas há algum negociozinho, pequeno, sobre alguns lotes. Quem sabe o que elas serão ainda algum dia? Tudo tem altos e baixos.
O certo é que mudei de opinião. No dia seguinte, depois do almoço, tirei da gaveta algumas centenas de mil-réis, e caminhei para a Bolsa, encomendando-me (é inútil dizê-lo ) ao Deus Abraão, Isaac e Jacó.Comprei um lote, a preço baixo, e particularmente prometi uma debênture de cera a S. Lucas, se me fizer ganhar um cobrinho grosso. Sei que é imitar aquele homem que, há dias, deu uma chave de cera a S. Pedro, por lhe haver deparado casa em que morasse; mas eu tenho outra razão. Na semana passada falei de uns casais de pombas, que vivem na igreja da Cruz dos Militares, aos pés de S. João e S. Lucas. Uma delas, vendo-me passar, quando voltava da Bolsa, desferiu o vôo, e veio pousar-me no ombro; mostrou-se meio agastada com a publicação, mas acabou dizendo que naquela rua, tão perto dos bancos e da praça, tinham elas uma grande vantagem sobre todos os mortais. Quaisquer que sejam os negócios, — arrulhoume ao ouvido, — o câmbio para nós está sempre a 27.
Não peço outra cousa ao apóstolo; câmbio a 27 para mim como para elas, e terá a debênture de cera, com inscrições e alegorias. Veja que nem lhe peço a cura da tosse e do coriza que me afligem, desde algum tempo. O meu talentoso amigo Dr. Pedro Américo disse outro dia na Câmara dos Deputados, propondo a criação de um teatro normal, que, por um milagre de higiene, todas as moléstias desaparecessem, "não haveria faculdade, nem artifícios de retórica capazes de convencer a ninguém das belezas da patologia nem da utilidade da terapêutica". Ah! meu caro amigo! Eu dou todas as belezas da patologia por um nariz livre e um peito desabafado. Creio na utilidade da terapêutica; mas que deliciosa cousa é não saber que ela existe, duvidar dela e até negá-la! Felizes os que podem respirar! bem-aventurados os que não tossem! Agora mesmo interrompi o que ia escrevendo para tossi; e, continuo a escrever de boca aberta para respirar. E falam-me em belezas da patologia... Francamente eu prefiro as belezas da Batalha de Avaí.
A rigor, devia acabar aqui; mas a notícia que acaba de chegar do Amazonas obriga-me a algumas linhas, três ou quatro. Promulgou-se a Constituição, e, por ela, o governador passa-se a chamar presidente do Estado. Com exceção do Pará e Rio Grande do Sul, creio que não falta nenhum. Sono tutti fatti marchesi. Eu, se fosse presidente da República, promovia a reforma da Constituição, para o único fim de chamarme governador. Ficava assim um governador cercado de presidentes, ao contrário dos Estados Unidos da América, e fazendo lembrar o imperador Napoleão, vestido com a modesta farda lendária, no meio dos seus marechais em grande uniforme.
Outra notícia que me obriga a não acabar aqui, é a de estarem os rapazes do comércio de S. Paulo fazendo reuniões para se alistarem na guarda nacional, em desacordo com os daqui, que acabam de pedir dispensa de tal serviço. Questão de meio; o meio é tudo. Não há exaltação para uns nem depressão para outros. Duas cousas contrárias podem ser verdadeiras e até legítimas conforme a zona. Eu, por exemplo, execro o mate chimarrão, os nossos irmãos do Rio Grande do Sul acham que não há bebida mais saborosa neste mundo. Segue-se que o mate deve ser sempre uma ou outra cousa? Não; segue-se o meio; o meio é tudo.
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[14 agosto]
SEMANA e finanças são hoje a mesma cousa. E tão graves são os negócios financeiros, que escrever isto só, pingar-lhe um ponto e mandar o papel para a imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever. Mas o leitor quer os seus poetas menores. Que os poetas magnos tratem os sucessos magnos; ele não dispensa aqui os assuntos mínimos, se os houve, e, se os não houve, a reflexões leves e curtas. Força é reproduzir o famoso Marche! Marche! de Bossuet... Perdão, leitor! Bossuet! eis-me aqui mais grave que nunca.
(continua...)