Por Gregório de Matos (1650)
E comendo o suor de vosso rosto
Dareis a Deus prazer, aos homens gosto.
AO VIGÁRIO ANTÔNIO MARQUES DE PERA DA ENCOMENDADO NA IGREJA DA Va DE S. FRANCISCO AMBICIOSO, E DESCONHECIDO.
Da tua Perada mica não te espantes, que me enoje, porque é força, que a entoje sendo doce de botica: o gosto não se me aplica
a uma conserva afamada,
e em botes tão redomada,
que sempre por ter que almoces, achas para tão maus doces a tutia preparada.
Se tua Tia arganaz te fez essa alcomonia,
com colher não te faria,
com espátula te faz:
criaste-te de rapaz
co pingue dessas redomas, e hoje tal asco lhe tomas,
que tendo uma herança rica hás raízes da botica,
contudo não tens, que comas.
Teu juízo é tão confuso, que quando a qualquer cristão lhe entra o uso de rezão,
de então lhe perdeste o uso: sempre foste tão obtuso, que já desde estudante
te tinham por um doudete, porque eras visto por alto, na fala falso contralto,
na vista fino falsete.
Correndo os anos cresceste, e se dizia em sussurro,
que era o teu crescer de burro,
pois cresceste, e aborreceste: logo em tudo te meteste, querendo ser eminente
nas artes, que estuda a gente,
mas deixou-te a tua asnia
Abel na filosofia, na poesia inocente.
Deram-te as primeiras linhas versos de tão baixa esfera, que o seu menor erro era
serem feitos às Negrinhas: com estas mesmas pretinhas, por mais que te desbatizes, gastaste os bens infelizes
do Marquês fino herbolário, porque todo o Boticário é mui rico de raízes.
Sendo um zote tão supino, és tão confiado alvar,
que andas por i a pregar geringonças ao divino: pregas como um capuchino, porque essa traça madura um curado te assegura, crendo Sua Senhoria, que a botica te daria
as virtudes pare a cura.
Mas ele se acha enganado, porque vê evidentemente,
que os botes para um doente
são, mas não pare um curado: entraste tão esfaimado a comer do sacrifício,
que todo o futuro ofício cantaste sobre fiado, pelo tirar de contado
ao dono do benefício.
Nenhuma outra cousa é este andar dos teus alparques, mais que ser Filho de Marques vizinho da Santa Sé:
outro da mesma ralé
tão Marques, e tão bribante te serve agora de Atlante, porque para conjurer-se, é facil de congregar-se um com outro semelhante.
AO PADRE DAMASO DA SILVA PARENTE DO POETA, E SEU OPOSTO, HOMEM DESBOCADO, E PRESUNÇOSO COM GRANDES IMPULSOS DE SER VIGÁRIO, SENDO POR ALGUM TEMPO EM NOSSA SENHORA DO LORETO.
Dâmaso, aquele madraço, que em pés, mãos, e mais miúdos pode bem dar seis, e ás
ao major Frisão de Hamburgo:
Cuja boca é mentideiro, onde acode todo o vulgo a escutar sobre la tarde
las mentiras como punho:
Mentideiro freqüentado de quantos senhores burros perdem o nome de limpos pela amizade de um sujo.
Cuja língua é relação aonde acham os mais puros para acusar um fiscal
para cortar um verdugo.
Zote muito parecido aos vícios todos do mundo,
pois nunca os alheios corta,
sem dar no seu próprio escudo:
Santo Antônio de baeta, que em toda a parte do mundo os casos, que sucederam, viu, e foi presente a tudo: O Padre papa jantares, hóspede tão importuno,
que para todo o banquete
traz sempre de trote o bucho:
Professo da providência, que sem lograr bazaruco, para passar todo um ano
nem dous vinténs faz de custo:
Que os amigos o sustentam, e lhe dão como de juro
o jantar, quando lhes cabe a cada qual por seu turno.
Essa vez, que tem dinheiro, que é de sete em sete lustros:
três vinténs com um tostão,
ou dous tostões quando muito:
Com um vintém de bananas, e de farinha dous punhos, para passar dia, e meio
tem certo o pão, e conduto: Lisonjeiro sem recato adulador sem rebuço,
que por papar-lhe um jantar
de um sacristão faz um Núncio: De um Tambor um General, um Branco de um Mamaluco, de uma senzala um palácio, e um galeão de um pantufo. Em passando a ocasião, tendo já repleto o bucho, desanda co'a taramela,
e a todos despe de tudo:
Outro sátiro de Esopo,
Que co mesmo bafo astuto
Esfriava o caldo quente, E aquentava o frio punho:
O Zote, que tudo sabe
O grande Jurisconsulto
Dos Litígios fedorentos Desta cidade monturo:
O Bártolo de improviso,
O subitâneo Licurgo,
Que anoitece um sabe-nada, E amanhece um sabe-tudo:
O Letrado grátis dato, e o que com saber infuso
quer ser Legista sem mestre, canonista sem estudo:
Agraduado de douto na academia dos burros,
que é braba universidade para doutorar brandúzios: desaforado sem susto, entremetido sem riso,
e sem desar abelhudo: Filho da puta com dita, alcoviteiro sem lucro,
cunhado do Mestre-Escola, parente que preza muito. Fraquíssimo pelas mãos, e valentão pelo vulto,
no corpo um grande de Espanha, no sangue escória do mundo. Este tal, de quem falamos, como tem grandes impulsos de ser batiza-crianças,
para ser soca-defuntos:
A Majestade d'El-Rei tem já com mil esconjuros
ordenado, que o não colem nem numa igreja de juncos.
Ele por matar desejos
foi-se ao adro devoluto da Senhora do Loreto,
onde está Pároco intruso:
(continua...)
BRASIL. Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Portal Domínio Público. Disponível em: https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16657. Acesso em: 30 nov. 2025.