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#Epopeias#Literatura Brasileira

Feitos de Mem de Sá

Por José de Anchieta (1563)

Acende-se mais e mais a coragem do chefe

e seus bravos: derrubam a golpes mortais, muitos selvagens.

Ora decepam braços enfeitados com penas de pássaros,

ora abatem com a lâmina reluzente cabeças altivas,

faces e bocas pintadas de vermelho urucum,

ora partem as frontes salientes entre as covas das têmporas

e enchem o Tártaro triste dessas vidas sem rumo.

Soam armas e golpes e gemidos e baques de corpos.

Aqui e ali jazem cadáveres de inimigos crivados

de chagas profundas, empastados de pó: a sangueira

cobre os arraiais e espumante se embebe na areia.

Não sustenta mais o embate assim dizimada,

a horda selvagem. Volta as costas e em fuga apressada

abandona as cercas e escapa por portas bem conhecidas.

Mal puderam os inimigos fugir às lanças e temidas espadas

e salvar a vida acolhendo-se à segunda trincheira,

inútil refúgio do desespero; atrás do muro de troncos

se escondem e tapam as entradas com grandes barreiras.

Eis que , não sofrendo demoras, com as armas tingidas

no sangue inimigo, Fernão com seus jovens briosos

acorre, e olhos na glória, se precipita ao assalto

do arraial medroso, e à força de golpes arrombam

os robles enormes, abrindo numerosas e largas entradas.

Uma vez dentro estraçalham a fortaleza e trucidam

a turba inimiga, ceifando com a espada afiada

esses corpos brutais. Junto ao mar o estrondo ecoa medonho

enfurece horrendo na praia o soldado matando

e enterrando vitorioso na areia corpos aos montes,

no inferno vidas que cevavam as carnes em carnes humanas

e impinguavam os ventres com o sangue dos homens.

Já não se alonga o combate, já não pensa o inimigo

em entesar o arco, e defender a vida com brio.

Tudo é pressa em fugir, não lhes valem de nada os redutos,

só resta galgar ligeiro as muralhas do último forte.

Nossas armas gloriosas prostraram o feroz inimigo,

rompendo à força as trincheiras com vasta matança.

O general e seu bravo esquadrão, cansados embora

do duplo esforço e com os corpos crivados de flechas,

conservaram ainda frescas a conhecida energia

das almas nobres: vibram de entusiasmo: uma de duas,

ou acabar com as hordas bárbaras ou deixar no combate

a vida, comprando com o sangue a vitória da pátria.

“Triunfadores meus, diz o chefe, vossa espada valente,

armas e destras estão tintas ainda do sangue maldito;

sem tardar, lancemo-nos contra o inimigo vencido,

enquanto o abate o terror das últimas duas batalhas.

Vedes quantos aí estão prostrados a gemer moribundos,

quantos outros na fuga receberam mortais ferimentos.

Ou exterminar de vez esta raça felina

com a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areia

gloriosamente”. A estas palavras, parte. A todos devora

o mesmo fogo. Arrojam-se como impetuosa corrente

ou como a tempestade negra que revolve o oceano,

encapela as ondas, rasga o linho branco das velas,

quebra os altos mastros, e, girando três ou quatro vezes as popas

as submerge voraz em rápido redemoinho.

Quantos estragos não causou então o braço valente

do jovem chefe! quantos corpos de guerreiros ferozes

arremessou à morte, tomando vingança no sangue inimigo.

Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços,

fervesse-lhes no peito um sangue mais quente,

acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe,

e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens,

atirando-os para as sombras eternas do inferno.

Mas, ai! que imensa é a humana inconstância!

Estes, mais aqueles começam de vacilar, vai-os prendendo

pavor covarde, cada vez maior, ao verem que a onda

dos índios cresce, já recuam e se furtam à luta,

esgueirando-se insensivelmente, esses covardes sem nome.

Tornam às naus, desligando da margem as barcas.

Abandonam o chefe, que ignora esse ato de infâmia,

entre poucos companheiros, o furor da pele renhida.

“Para onde fugis, desgraçados? que medo vil vos assalta

o coração sem brio? que inimigo estais perseguindo

tão à pressa? Já não vos movem os louros das duas vitórias

e as fortalezas que tomastes com a morte de seus defensores?

Apavorados de terror indigno, não vos envergonha

abandonar assim vosso chefe à fúria dos bárbaros

entre tantos perigos, ao peso de tantos trabalhos.

Para onde fugis? Sustai o passo! A maior parte dos vossos

sucumbe: voltai pois ligeiros e, ao lado do chefe, valentes

destruí o arraial. Para que tanto amor pela vida?”

Enquanto, ardendo em fúrias, o jovem vai fulminante

espalhando nos acampamentos os horrores da morte,

certo que os seus lutam a seu lado, e em esforço supremo

esmagam as hordas bárbaras finalizando a peleja,

eis que pouco a pouco em magotes os selvagens acorrem

à batalha. Mandam-nos das florestas vizinhas às cercas,

para auxílio dos seus e reforço aos que iam cedendo.

Por atalhos desconhecidos afluem de todos os lados

em grande número. Depois que enxameou essa turba

imensa, vai confuso rumor pelas trincheiras

e grita desacostumada até às nuvens se ergue.

Tal o arroio sombreado que desce das altas montanhas

entre seixos roliços num rolar gorgolhante,

(continua...)

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