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#Contos#Literatura Brasileira

Conversão de um avaro

Por Machado de Assis (1878)

— De nenhum modo. O que te digo é que toda a circunspecção é pouca, até o dia do casamento.

Ouvindo esta palavra, Gil Gomes sentiu um calafrio e perdeu momentaneamente todas as fôrqas. A idéia talvez lhe passasse alguma vez pelo espírito, mas vaga e obscura, sem se fixar nem clarear. José Borges proferia a palavra em toda a sua realidade. O colchoeiro não pôde resistir ao abalo. Ele vivia em uma agitação que o punha fora da realidade e sem efeitos. A palavra formal, na boca de um parente, quando já ninguém ignorava a natureza de seus sentimentos, era um golpe quase inesperado e de efeito certo. José Borges fingiu não reparar na impressão do amigo, e continuou a falar do casamento, como de uma coisa indeclinável. Teceu os maiores elogios à viúva, à sua beleza, aos seus pretendentes, às suas virtudes. A maior destas era a economia; pelo menos, foi o que ele mais louvou. Quanto aos pretendentes eram muitos, mas ultimamente estavam reduzidos a cinco ou seis. Um deles era desembargador. No fim de uma hora, José Borges saiu.

A situação do colchoeiro complicava-se; sem o pensar achava-se às portas de um casamento, isto é, de uma grande despesa que viria abalar muito o edifício laborioso de suas economias.

Passou-se uma semana depois daquele diálogo, e a situação de Gil Gomes não melhorou nada. Pelo contrário, agravou-se. No fim desse tempo, tornou a ver a viúva. Nunca lhe pareceu mais bela. Trazia um vestido simples, nenhum ornato, salvo uma flor ao seio, que ela em ocasião oportuna tirou e ofereceu ao colchoeiro. A paixão de Gil Comes foi-se convertendo numa embriaguez; ele já não podia viver sem ela. Era preciso vê-la, e quando a via, tinha ânsia de lhe cair ao pés. Rufina suspirava, falava; quebrava os olhos, trazia arrastado o pobre Gil Gomes.

Veio mais uma semana, depois outra e mais outra. O amor trouxe algumas despesas nunca usadas. Gil Gomes sentiu que a avareza afrouxava um pouco as rédeas; ou, por outra, não sentiu nada, porque nada podia,sentir; foi alongando os cordões à bolsa.

A idéia do casamento aferrou-se-lhe deveras. Era grave, era um abismo que ele abriu diante de si. Às vezes assustava-se; outras vezes fechava os olhos disposto a mergulhar nas trevas.

Um dia, Rufina ouviu ao colchoeiro o pedido em regra, ainda que timidamente formulado. Ouviu-o, fechou a cabeça nas mãos e recusou.

— Recusa-me? clamou o infeliz aturdido.

— Recuso, disse firmemente a viúva.

Gil Gomes não contava com a resposta; insistiu, rogou, mas a viúva não parecia ceder. — Mas por que recusa? perguntou. Não gosta de mim?

— Oh! interrompeu ela apertando-lhe as mãos.

— Não é livre?

— Sou.

— Não compreendo, explique-se.

A viúva não respondeu logo; foi dali a um sofá e meteu a cabeça nas mãos, durante cinco minutos. Vista assim era talvez mais bela. Estava meio reclinada, ofegante, com alguma desordem nos cabelos.

— Que é? que tem? perguntou Gil Gomes com uma ternura que ninguém era capaz de supor-lhe. Vamos lá; confie-me tudo, se alguma coisa há, porque eu não compreendo... — Amo-o muito, disse Rufina erguendo para ele um par de olhos belos como duas estrelas; amo-o muito e muito. Mas vacilo em casar.

— Disseram-lhe de mim alguma coisa?

— Não, mas tremo do casamento.

— Por quê? Foi infeliz com o primeiro?

— Fui muito feliz, e por isso mesmo receio que seja infeliz agora. Parece-me que o céu me castigará se eu casar segunda vez, porque nenhuma mulher foi ainda tão amada como eu fui. Ob! se soubesse que amor me teve meu marido! Que paixão! que delírio! Vivia para fazer-me feliz. Perdi-o; casar com outro é esquecê-lo...

Tornou a cobrir o rosto com as mãos, enquanto o colchoeiro ferido por aquele novo dardo, jurava a seus deuses que havia de casar com ela ou o mundo viria abaixo. A luta durou três dias, três longos e estirados dias. Gil Gomes não cuidou de outra coisa durante o combate; não abriu os livros da casa; talvez chegou a não afagar um freguês. Pior que tudo: chegou a oferecer um camarote de teatro à viúva. Um camarote! Que decadência!

Não podia ir longe a luta e não foi. No quarto dia recebeu ele uma resposta decisiva, um sim escrito em papel bordado. Respirou; beijou o papel; correu à casa de Rufina. Ela esperava-o ansiosa. Suas mãos tocaram-se; um ósculo confirmou o escrito. Desde aquele dia até o do casamento foi um turbilhão em que o pobre colchoeiro viveu. Não via nada; quase não sabia contar; estava cego e tonto. De quando em quando um movimento instintivo parecia fazê-lo mudar de caminho, mas era rápido. Assim, a idéia dele era que o casamento não tivesse aparato; mas José Borges combateu essa idéia como indigna dos noivos:

— Demais é bom que todos o invejem.

— Que tem isso?

— Quando virem passar o préstito todos dirão: Que maganão! Que casamento! Rico e feliz!

— Rico... isto é... interrompeu Gil Gomes, cedendo ao costume antigo. José Borges bateu-lhe no ombro, sorriu e não admitiu réplica. Ainda assim, ele não teria vencido, se não fosse o voto da prima. A viúva declarou preferível um casamento aparatoso; o colchoeiro não tinha outra vontade.

(continua...)

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