Por Machado de Assis (1865)
Um dia, era de tarde, eu estava só; esperava-te para irmos visitar teu pai enfermo. Parou um carro à porta. Mandei ver. Era Emílio.
Recebi-o como de costume.
Disse-lhe que íamos visitar um doente, e ele quis logo sair. Disse-lhe que ficasse até à tua chegada. Ficou como se outro motivo o detivesse além de um dever de cortesia.
Passou-se meia hora.
Nossa conversa foi sobre assuntos indiferentes.
Em um dos intervalos da conversa Emílio levantou-se e foi à janela. Eu levantei-me igualmente para ir ao piano buscar um leque. Voltando para o sofá reparei pelo espelho que Emílio me olhava com um olhar estranho. Era uma transfiguração. Parecia que naquele olhar estava concentrada toda a alma dele.
Estremeci.
Todavia fiz um esforço sobre mim e fui sentar-me, então mais séria que nunca.
Emílio encaminhou-se para mim.
Olhei para ele.
Era o mesmo olhar.
Baixei os meus olhos.
- Assustou-se? perguntou-me ele.
Não respondi nada. Mas comecei a tremer de novo e parecia-me que o coração me queria pular fora do peito.
É que naquelas palavras havia a mesma expressão do olhar; as palavras faziam-me o efeito das palavras da carta.
- Assustou-se? repetiu ele.
- De quê? perguntei eu procurando rir para não dar maior gravidade à situação.
- Pareceu-me.
Houve um silêncio.
- D. Eugênia, disse ele sentando-se; não quero por mais tempo ocultar o segredo que faz o tormento da minha vida. Fora um sacrifício inútil. Feliz ou infeliz, prefiro a certeza da minha situação. D. Eugênia, eu amo-a.
Não te posso descrever como fiquei, ouvindo estas palavras. Senti que empalidecia; minhas mãos estavam geladas. Quis falar: não pude.
Emílio continuou:
- Oh! eu bem sei a que me exponho. Vejo como este amor é culpado. Mas que quer? É fatalidade. Andei tantas léguas, passei à ilharga de tantas belezas, sem que o meu coração pulsasse. Estava-me reservada a ventura rara ou o tremendo infortúnio de ser amado ou desprezado pela senhora. Curvo-me ao destino. Qualquer que seja a resposta que eu possa obter, não recuso, aceito. Que me responde?
Enquanto ele falava, eu podia, ouvindo-lhe as palavras, reunir algumas idéias. Quando ele acabou levantei os olhos e disse:
- Que resposta espera de mim?
- Qualquer.
- Só pode esperar uma...
- Não me ama?
- Não! Nem posso e nem amo, nem amaria se pudesse ou quisesse... Peço que se retire.
E levantei-me.
Emílio levantou-se.
- Retiro-me, disse ele; e parto com o inferno no coração. Levantei os ombros em sinal de indiferença.
- Oh! eu bem sei que isso lhe é indiferente. É isso o que eu mais sinto. Eu preferia o ódio; o ódio, sim; mas a indiferença, acredite, é o pior castigo. Mas eu o recebo resignado. Tamanho crime deve ter tamanha pena.
E tomando o chapéu chegou-se a mim de novo.
Eu recuei dous passos.
- Oh! não tenha medo. Causo-lhe medo?
- Medo? retorqui eu com altivez.
- Asco? perguntou ele.
- Talvez... murmurei.
- Uma única resposta, tornou Emílio; conserva aquela carta? - Ah! disse eu. Era o autor da carta?
- Era. E aquele misterioso do corredor do Teatro Lírico. Era eu. A carta? - Queimei-a.
- Preveniu o meu pensamento.
E cumprimentando-me friamente dirigiu-se para a porta. Quase a chegar à porta senti que ele vacilava e levava a mão ao peito.
Tive um momento de piedade. Mas era necessário que ele se fosse, quer sofresse quer não. Todavia, dei um passo para ele e perguntei-lhe de longe:
- Quer dar-me uma resposta?
Ele parou e voltou-se.
- Pois não!
- Como é que para praticar o que praticou fingiu-se amigo de meu marido?
- Foi um ato indigno, eu sei; mas o meu amor é daqueles que não recuam ante a indignidade. É o único que eu compreendo. Mas, perdão; não quero enfadá-la mais. Adeus! Para sempre!
E saiu.
Pareceu-me ouvir um soluço.
Fui sentar-me ao sofá. Daí a pouco ouvi o rodar do carro.
O tempo que mediou entre a partida dele e a tua chegada não sei como se passou. No lugar em que fiquei aí me achaste.
Até então eu não tinha visto o amor senão nos livros. Aquele homem parecia-me realizar o amor que eu sonhara e vira descrito. A idéia de que o coração de Emílio sangrava naquele momento, despertou em mim um sentimento vivo de piedade. A piedade foi um primeiro passo.
"Quem sabe, dizia eu comigo mesma, o que ele está agora sofrendo? E que culpa é a dele, afinal de contas? Ama-me, disse-mo; o amor foi mais forte do que a razão; não viu que eu era sagrada para ele; revelou-se. Ama, é a sua desculpa."
Depois repassava na memória todas as palavras dele e procurava recordar me do tom em que ele as proferira. Lembrava-me também do que eu dissera e o tom com que respondera às suas confissões.
Fui talvez severa demais. Podia manter a minha dignidade sem abrir-lhe uma chaga no coração. Se eu falasse com mais brandura podia adquirir dele o respeito e a veneração. Agora há de amar-me ainda, mas não se recordará do que se passou sem um sentimento de amargura.
Estava nestas reflexões quando entraste.
Lembras-te que me achaste triste e perguntaste a causa disso. Nada te respondi. Fomos à casa da tua tia, sem que eu nada mudasse do ar que tinha antes.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Confissões de uma Viúva Moça. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1865.