Por Machado de Assis (1877)
Morreu o urso no caminho?
CORONEL
Qual urso, nem meio urso! Rebentou uma revolução na Polônia!
EMÍLIA
Ah!...
TITO
Lá vai o coronel brilhar...
CORONEL
Qual brilhar!... (consigo) Esta só pelo diabo...
Cena VIII
Os mesmos, SEABRA, MARGARIDA
MARGARIDA
(a Emília)
Que é isso? (vendo-a preparar-se) Que é isso? Já te vais?
EMÍLIA
Já, mas volto amanhã.
MARGARIDA
É sério?
EMÍLIA
Muito sério.
TITO
(a Seabra)
A tal viagem da serra pôs-me entrompado. Ando dormindo em pé.
CORONEL
(a Margarida)
Até amanhã.
MARGARIDA
Que ar triste é esse?
CORONEL.
Fortunas minhas!
EMÍLIA
(a Margarida)
Temos muito que conversar. Até amanhã. (beijam-se. O coronel despede-se dos outros. Emília despede-se de Seabra e de Tito, mas com certa frieza)
Cena IX
MARGARIDA, SEABRA, TITO
MARGARIDA
Emília sai amuada. (a Tito) Que foi?
TITO
Não sei... ela é boa senhora; um pouco secantezinha... muito dada à poesia... ora eu sou todo da prosa... (batendo no estômago) Há prosa?
SEABRA
Ainda não jantaste? Anda jantar...
TITO
Vamos à prosa, vamos à prosa!
(Fim do 1º. ato.)
ATO SEGUNDO
(Sala em casa de Emília.)
Cena I
MARGARIDA, CORONEL
MARGARIDA
Ora viva!
CORONEL
(triste)
Bom dia, minha senhora!
MARGARIDA
Que ar triste é esse?
CORONEL
Ah! minha senhora... sou o mais infeliz dos homens...
MARGARIDA
Por quê? Venha sentar-se... (o coronel senta-se) Então, conte-me... Que há?
CORONEL
Duas desgraças. A primeira em forma de ofício da minha legação.
MARGARIDA
É chamado ao exército?
CORONEL,
Exatamente. A segunda em forma de carta.
MARGARIDA
De carta?
CORONEL,
(dando-lhe uma carta)
Veja isto. (Margarida lê e dá-lha de novo) Que me diz a isto?
MARGARIDA
Não compreendo...
CORONEL,
Esta carta é dela.
MARGARIDA
Sim, e depois?
CORONEL
É para ele.
MARGARIDA
Ele quem?
CORONEL
Ele! o diabo! o meu rival! o Tito!
MARGARIDA
Ah!
CORONEL
Dizer-lhe o que senti quando apanhei esta carta é impossível. Nunca tremi nem mesmo na Criméia, e olhe que estava feio! Mas quando li isto não sei que vertigem se apoderou de mim. Fez-me o efeito de um ucasse de desterro para a Sibéria. Ah! a Sibéria é um paraíso à vista de Petrópolis neste momento. Ando tonto! A cada passo como que desmaio... Ah!...
MARGARIDA
Ânimo!
CORONEL
É isto mesmo que eu vinha buscar... é uma consolação, uma animação. Soube que estava aqui e estimei achá-la só... Ah! quanto sinto que o estimável seu marido esteja vivo... porque a melhor consolação era aceitar V. Exa. um coração tão mal compreendido.
MARGARIDA
Felizmente ele está vivo.
CORONEL.
Felizmente! (mudando o tom) Tive duas idéias. Uma foi o desprezo; mas desprezá-los é pô-los em maior liberdade e ralar-me de dor e de vergonha; a segunda foi o duelo; é melhor... ou mato... ou...
MARGARIDA
Deixe-se isso.
CORONEL
É indispensável que um de nós seja riscado do número dos vivos...
MARGARIDA
Pode ser engano...
CORONEL
Mas não é engano, é certeza.
MARGARIDA
Certeza de quê?
CORONEL
Ora ouça: (lê o bilhete) "Se ainda não me compreendeu é bem curto de penetração. Tire a máscara e eu me explicarei. Esta noite tomo chá sozinha. O importuno coronel não me incomodará com as suas tolices. Dê-me a felicidade de vê-lo e admirá-lo. Emília."
MARGARIDA
Mas que é isto?
CORONEL.
Que é isto? Ah! se fosse mais do que isto já eu estava morto! Pude pilhar a carta e a tal entrevista não se deu...
MARGARIDA
Quando foi escrita a carta?
CORONEL
Ontem.
MARGARIDA
Tranqüilize-se: posso afirmar-lhe que essa carta é pura caçoada. Trata-se de vingar o nosso sexo ultrajado; trata-se de fazer com que o Tito se apaixone... nada mais.
CORONEL
Sim?
MARGARIDA
É pura verdade. Mas veja lá. Isto é segredo. Se lho descobri foi por vê-lo tão aflito. Não nos comprometa.
CORONEL
Isso é sério?
MARGARIDA
Como quer que lho diga?
CORONEL
Ah! que peso me tirou! Pode estar certa de que o segredo caiu num poço. Oh! muito me hei de rir!... muito me hei de rir!... Que boa inspiração tive em vir falar-lhe! Diga-me: posso dizer à D. Emília que sei tudo?
MARGARIDA
Não!
CORONEL
É então melhor que não me dê por achado...
MARGARIDA
Sim.
CORONEL
Muito bem!
Cena II
Os mesmos, TITO
TITO
Bom dia, D. Margarida... Sr. Coronel... (a Margarida) Sabe que acordei não há uma hora? Disseram-me que tinham saído a visitar D. Emília. Almocei e aqui estou.
MARGARIDA
Dormiu bem?
TITO
Como um justo. Tive sonhos cor-de-rosa: sonhei com o coronel...
CORONEL.
(mofando)
Ah! Sonhou comigo?... (à parte) Coitado! Tenho pena dele!
MARGARIDA
Sabe que o Sr. meu marido anda de passeio?
TITO
Sim? (vai à janela) E a manhã está bonita! Manhã? Já não é muito cedo... Jantam cá?
MARGARIDA
Não sei. Tenho duas visitas para fazer: uma, com Emília, outra, com Ernesto.
CORONEL
(a Tito)
Então vai engordando?
TITO
Acha?
CORONEL
Pois não! Eu creio que é do amor...
TITO
Do amor? Ó coronel, está sonhando?
CORONEL
(misterioso)
Talvez... talvez... (à parte) Tu é que estás sonhando.
MARGARIDA
Eu vou ver se Emília está pronta.
TITO
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877