Por Machado de Assis (1880)
Luís Bastinhos curvou-se como quem obedece a uma opressão; com a flexibilidade passiva do fatalismo. Se era necessário dançar, ele o faria, porque dançava como poucos, e obedecer ao velho era uma maneira de amar a moça. Ai dele! Marcelina olhou o com tamanho desprezo, que se ele lhe apanha o olhar, não é impossível que de uma vez para sempre ali deixasse de pôr os pés. Mas não o viu; continuou a arredá-los dali bem poucas vezes.
Os convites foram profusamente espalhados. O major Caldas fez o inventário de todas as suas relações, antigas e modernas, e não quis que nenhum camarão lhe escapasse pelas malhas: lançou uma rede fina e instante. Se ele não pensava em outra cousa o velho major! Era feliz; sentia-se poupado da adversidade, quando muitos outros companheiros vira cair, uns mortos, outros extenuados somente. A comemoração de seu aniversário tinha, portanto, uma significação mui alta e especial; e foi isso mesmo o que ele disse à filha e aos demais parentes.
O Pimentel, que também fora convidado, sugeriu a Luís Bastinhos a idéia de dar um presente de anos ao major.
— Já pensei nisso, retorquiu o amigo; mas não sei o que lhe dê.
— Eu te digo.
— Dize.
— Dá-lhe um genro.
— Um genro?
— Sim, um noivo à filha; declara o teu amor e pede-a. Verás que, de todas as dádivas desse dia, essa será a melhor.
Luís Bastinhos bateu palmas ao conselho do Pimentel.
— É isso mesmo, disse ele; eu andava com a idéia em alguma jóia, mas... — Mas a melhor jóia és tu mesmo, concluiu o Pimentel.
— Não digo tanto.
— Mas pensas.
— Pimentel!
— E eu não penso outra cousa. Olha, se eu tivesse intimidade na casa, há muito tempo que estarias amarrado à pequena. Pode ser que ela não goste de ti; mas também é difícil a uma moça alegre e travessa gostar de um casmurro, como tu — que te sentas, defronte dela, com um ar solene e dramático, a dizer em todos os teus gestos: minha senhora, fui eu que a salvei da morte; deve rigorosamente entregar-me a sua vida... Ela pensa decerto que estás fazendo um calembour de mau gosto e fecha-te a porta...
Luís Bastinhos esteve calado alguns instantes.
— Perdôo-te tudo, a troco do conselho que me deste; vou oferecer um genro ao major.
Dessa vez, como de todas as outras, a promessa era maior do que a realidade; ele lá foi, lá tornou, nada fez. Iniciou duas ou três vezes uma declaração; chegou a entornar um ou dous olhares de amor, que não pareceram de todo feios à pequena; e, porque ela sorriu, ele desconfiou e desesperou. Qual! pensava consigo o rapaz; ela ama a outro com certeza.
Veio enfim o dia, o grande dia. O major deu um pequeno jantar, em que figurou Luís Bastinhos; de noite reuniu uma parte dos convidados, porque nem todos lá puderam ir, e fizeram bem; a casa não dava para tanto. Ainda assim era muita gente reunida, muita e brilhante, e alegre, como alegre parecia e deveras estava o major. Não se disse nem se dirá dos brindes do major, à mesa do jantar; não podem inserir-se aqui todas as recordações clássicas do velho poeta de outros anos; seria não acabar mais. A única cousa que verdadeiramente se pode dizer é que o major declarou, à sobremesa, ser esse o dia mais venturoso de todos os seus longos anos, entre outros motivos, porque tinha gosto de ver ao pé de si o jovem salvador da filha.
— Que idéia! murmurou a filha; e deu um imperceptível muxoxo. Luís Bastinhos aproveitou o ensejo. "Magnífico, disse ele consigo; depois do café, peço-lhe duas palavras em particular, e logo depois a filha."
Assim fez; tomado o café, pediu ao major uns cinco minutos de atenção. Caldas, um pouco vermelho de comoção e de champagne, declarou-lhe que até lhe daria cinco mil minutos, se tantos fossem precisos.
Luís Bastinhos sorriu lisonjeado a essa deslocada insinuação; e, entrando no gabinete particular do major, foi sem mais preâmbulo ao fim da entrevista; pediu-lhe a filha em casamento. O major quis resguardar um pouco a dignidade paterna; mas era impossível. Sua alegria foi uma explosão.
— Minha filha! bradou ele; mas... minha filha... ora essa... pois não!... Minha filha! E abria os braços e apertava com eles o jovem candidato, que, um pouco admirado do próprio atrevimento, chegou a perder o uso da voz. Mas a voz era, aliás, inútil, ao menos durante o primeiro quarto de hora, em que só falou o ambiciado sogro, com uma volubilidade sem limites. Cansou enfim, mas de um modo cruel.
— Velhacos! disse ele; com que então... amam-se às escondidas...
— Eu?
— Pois quem?
— Peço-lhe perdão, disse Luís Bastinhos; mas não sei... não tenho certeza... — Quê! não se correspondem?...
— Não me tenho atrevido...
O major abanou a cabeça com certo ar de irritação e lástima; pegou-lhe das mãos e fitou-o durante alguns segundos.
— Tu és afinal de contas um pandorga, sim, um pandorga — disse ele, largando-lhe as mãos.
Mas o gosto de os ver casados era tal, e tal a alegria daquele dia de anos, que o major sentiu a lástima converter-se em entusiasmo, a irritação em gosto, e tudo acabou em boas promessas.
— Pois digo-te, que te hás de casar, concluiu ele; Marcelina é um anjo, tu outro, eu outro; tudo indica que nos devemos ligar por laços mais doces do que as simples relações da vida. Juro-te que serás o pai de meus netos...
(continua...)
ASSIS, Machado de. A Chave. A Estação, Rio de Janeiro, dez. 1879-fev. 1880.