Por Machado de Assis (1870)
A pobre moça gritava, mas em vão; os dois lacaios levaram-na para fora, enquanto os outros velhos seguraram-me pelos braços e pernas, e levaram-me em procissão para uma sala toda forrada de preto. Cheguei ali mais morto que vivo. Já lá achei o padre vestido de batina.
Quis ver antes de morrer o meu pobre amigo Vaz, mas soube pelo coronel que ele estava dormindo, e não sairia mais daquela casa; era o prato destinado ao ano futuro. O padre declarou-me que era o meu confessor; mas eu recusei receber a absolvição do próprio que me ia matar. Queria morrer impenitente.
Deitaram-me em cima de uma mesa atado de pés e mãos, e puseram-se todos à roda de mim, ficando à minha cabeceira um lacaio armado com um punhal.
Depois entrou toda a companhia a entoar um coro em que eu só distinguia as palavras: Em nome da águia preta e dos sete meninos do Setentrião.
Corria-me o suor em bagas; eu quase nada via; a idéia de morrer era horrível, apesar dos meus setenta anos, em que já o mundo não deixa saudades.
Parou o coro e o padre disse com voz forte e pausada:
— Atenção! Faça o punhal a sua obra!
Luziu-me pelos olhos a lâmina do punhal, que se cravou todo no coração; o sangue jorrou-me do peito e inundou a mesa; eu entre convulsões mortais dei o último suspiro. Estava morto, completamente morto, e entretanto ouvia tudo à roda de mim; restava-me uma certa consciência deste mundo a que já não pertencia.
— Morreu? perguntou o coronel.
— Completamente, respondeu Tobias; vão chamar agora as senhoras. As senhoras chegaram dali a pouco, curiosas e alegres.
— Então? perguntou a condessa; temos homem?
— Ei-lo.
As mulheres aproximaram-se de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais; todos concordaram em que eu estava gordo e havia de ser excelente prato. — Não podemos assá-lo inteiro; é muito alto e gordo; não cabe no forno; vamos esquartejá-lo; venham facas.
Estas palavras foram ditas pelo Tobias, que imediatamente distribuiu os papéis: o coronel cortar-me-ia a perna esquerda, o condecorado a direita, o padre um braço, ele outro e a condessa, amiga de nariz de gente, cortaria o meu para comer de cabidela. Vieram as facas, e começou a operação; confesso que eu não sentia nada; só sabia que me haviam cortado uma perna quando ela era atirada ao chão com estrépito. — Bem, agora ao forno, disse Tobias.
De repente ouvi a voz do Vaz.
— Que é isso, ó Camilo, que é isso? dizia ele.
Abri os olhos e achei-me deitado no sofá em minha casa; Vaz estava ao pé de mim. — Que diabo tens tu?
Olhei espantado para ele, e perguntei:
— Onde estão eles?
— Eles quem?
— Os canibais!
— Estás doido, homem!
Examinei-me: tinha as pernas, os braços e o nariz. O quarto era o meu. Vaz era o mesmo Vaz.
— Que pesadelo tiveste! disse ele. Estava eu a dormir guando acordei com os teus gritos. — Ainda bem, disse eu.
Levantei-me, bebi água, e contei o sonho ao meu amigo, que riu muito, e resolveu passar a noite comigo. No dia seguinte, acordamos tarde e almoçamos alegremente. Ao sair, disse-me o Vaz:
— Por que não escreves o teu sonho para o Jornal das Famílias?
— Homem, talvez.
— Pois escreve, que eu o mando ao Garnier.
Baixar texto completo (.txt)ASSIS, Machado de. A vida eterna. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, ano 6, [p. e n. desconhecidos], 1870.