Por Machado de Assis (1886)
Em casa de Tibério Valença faziam-se preparativos para o casamento de Elisa. O noivo era um jovem deputado de província, se do Norte ou do Sul, não sei, mas deputado cujo talento supria os anos de prática, e que começava a influir na situação. Acrescia que era dono de uma boa fortuna pela recente morte do pai. Tais considerações decidiram Tibério Valença. Ter por genro um homem abastado, gozando de uma certa posição política, talvez ministro dentro de pouco tempo, era um partido de grande valor. Neste ponto a alegria de Tibério Valença era legítima. E como os noivos se amavam deveras, condição que Tibério Valença dispensaria se necessário fosse, esta união tornou-se aos olhos de todos uma união natural e propícia. A alegria de Tibério Valença não podia ser maior. Tudo lhe corria às mil maravilhas. Casava a filha ao sabor dos seus desejos, e tinha longe o filho desnaturado, que talvez aquela hora já começasse a arrepender-se das veleidades amorosas que tivera. Preparava-se enxoval, faziam-se convites, compravam-se mil coisas necessárias à casa do pai e à da filha, e tudo esperava ansioso o dia aprazado para o casamento de Elisa. Ora, no meio dessa satisfação plena e geral, caiu subitamente como um raio o filho desterrado, conviva que se não contara para a festa.
A alegria de Tibério Valença ficou assim um tanto aguada. Apesar de tudo não quis romper absolutamente com o filho, e, sinceramente ou não, o primeiro que falou a Tomás não foi o algoz, foi o pai.
Tomás disse que viera para assistir ao casamento da irmã e conhecer o cunhado. Apesar desta declaração Tibério Valença determinou sondar o espírito do filho no capítulo dos amores. Guardou-se para o dia seguinte.
E no dia seguinte, logo depois do almoço, Tibério Valença deu familiarmente o braço ao filho e levou-o para uma sala retirada. Aí, depois de fazê-lo sentar, perguntou-lhe se o casamento, se outro motivo o trouxera tão inopinadamente ao Rio de Janeiro. Tomás hesitou.
— Fala, disse o pai, fala com franqueza.
— Pois bem, vim por dois motivos: pelo casamento e por outro...
— O outro é o mesmo?
— Quer franqueza, meu pai?
— Exijo.
— É...
— Está bem. Lavo as mãos. Casa-te, consinto; mas nada mais terás de mim. Nada, ouviste?
E dizendo isto Tibério Valença saiu.
Tomás ficou pensativo.
Era um consentimento aquilo. Mas de que natureza? Tibério Valença dizia que, em se casando, o filho não esperasse nada do pai. Que não esperasse os bens da fortuna,
pouco ou nada era para Tomás. Mas aquele nada estendia-se a tudo, talvez à proteção paterna, talvez ao amor paterno. Esta consideração de que perderia a afeição do pai calava muito no espírito do filho.
A esperança nunca abandonou os homens. Tomás concebeu a esperança de convencer o pai com o andar dos tempos.
Entretanto, passaram-se os dias e concluiu-se o casamento da filha de Tibério Valença. No dia do casamento, como nos outros, Tibério Valença tratou o filho com uma sequidão nada paternal. Tomás sentia-se por isso, mas a vista de Malvina, a cuja casa ia regularmente três vezes por semana, dissipava as aflições para dar-lhe novas esperanças, e novos desejos de completar a ventura que procurava. O casamento de Elisa coincidiu com a retirada do deputado para a província natal. A mulher acompanhou o marido, e, a instâncias do pai, ficou convencionado que no ano seguinte viriam estabelecer-se definitivamente no Rio de Janeiro.
O tratamento de Tibério Valença em relação a Tomás continuou a ser o mesmo: frio e reservado. Em vão procurava o moço um ensejo para tocar de frente a questão e trazer o pai a sentimentos mais compassivos; o pai esquivava-se sempre.
Mas se era assim por um lado, por outro os desejos legítimos do amor de Tomás por Malvina cresciam mais e mais, dia por dia. A luta que se dava no coração de Tomás, entre o amor de Malvina e o respeito aos desejos de seu pai, foi fraqueando, cabendo o triunfo ao amor. Os esforços do moço eram inúteis, e finalmente um dia chegou em que foi-lhe necessário decidir entre as determinações do pai e o amor pela pianista. E a pianista? Essa era mulher e amava perdidamente o filho de Tibério Valença. Também uma luta interna se dava no espírito dela, mas à força do amor que alimentava ligavam-se as instâncias continuadas de Tomás. Este objetava-lhe que, uma vez casados, a clemência do pai reapareceria, e tudo se terminaria em bem. Tal estado de coisas prolongou-se até um dia em que não foi mais possível a ambos recuar. Sentiram que a existência dependia do casamento.
Tomás encarregou-se de falar a Tibério. Era o ultimatum.
Uma noite em que Tibério Valença pareceu mais alegre que de ordinário, Tomás deu um passo afoitamente para a questão, dizendo-lhe que, depois de vãos esforços, reconhecera que a paz da sua existência dependia do casamento com Malvina. — Então casas-te? perguntou Tibério Valença.
— Venho pedir-lhe...
(continua...)
ASSIS, Machado de. A pianista. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, n. 9-10, set.-out. 1866. (Publicado em folhetins, assinado por J.J.).