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#Crônicas#Literatura Brasileira

Crônica do Viver Baiano Seiscentista

Por Gregório de Matos (1650)

FIZERAM OS RELIGIOSOS COM UMA PATENTE FALSA DE PRIOR A FREI MIGUEL NOVELOS, APELIDADO O LATINO POR DIVERTIMENTO EM UM DIA DE MUITA CHUVA.


Victor, meu Padre Latino, que só vós sabeis latim,

que agora se soube enfim,

para um breve tão divino:

era num dia mofino

de chuva, que as canas rega, eis a patente aqui chega,

e eu por milagre o suspeito na Igreja Latina feito,

para se pregar na grega.

Os sinos se repicaram de seu moto natural,

porque o Padre Provincial,

e outros Padres lhe ordenaram:

os mais Frades se abalaram a lhe dar obediência,

e eu em tanta complacência, por não faltar ao primor, dizia a um Victor Prior,

Victor, vossa Reverência.

Estava aqui retraído o Doutor Gregório, e vendo um breve tão reverendo

ficou co queixo caído:

mas tornando em seu sentido de galhofa perenal,

que não vi patente igual,

disse: e é cousa patente,

que se a patente não mente, é obra de pedra, e cal.

Victor, Victor se dizia, e em prazer tão repentino, sendo os vivas ao latino soavam a ingresia:

era tanta a fradaria,

que nesta casa Carmela não cabia refestela,

mas recolheram-se enfim cada qual ao seu celim,

e eu fiquei na minha cela.


AO VIGÁRIO DA VILA DE S. FRANCISCO POR UMA PENDÊNCIA, QUE TEVE COM UM OURIVES A RESPEITO DE UMA MULATA, QUE SE DIZIA CORRER POR SUA CONTA.


Naquele grande motim, onde acudiu tanta gente, a título de valente

também veio valentim:

puxou pelo seu afim,

e tirando-lhe a barriga,

você se quer, que lho diga,

disse ao Ourives da prata, na obra desta Mulata

mete muita falsa liga: Briga, briga.

É homem tão desalmado, que por lhe a prata faltar,

a estar sempre a trabalhar

bate no vaso sagrado: não vê que está excomungado, porque com tanta fadiga a peça da igreja obriga

numa casa excomungada com censura reservada,

pela qual Deus o castiga: Briga, briga.

Porque com modos violentos a um vigário tão capaz

sobre quatro, que já traz,

cornos, lhe põe quatrocentos!

deixe-se desses intentos, e reponha a rapariga,

pois a repô-la se obriga,

quando afirma, que a possui, e se a razão não conclui, vai esta ponta à barriga: Briga, briga.

Senhor Ourives, você

não é ourives da prata?

pois que quer dessa Mulata,

que cobre, ou tambaca é?

Restitua a Moça, que é peça da Igreja antiga:

restitua a rapariga,

que se vingará o Vigário

talvez no confessionário, e talvez na desobriga: Briga, briga.

A Mulata já lhe pesa de trocar odre por odre,

pois o leigo é membro podre, e o Padre membro da igreja:

sempre esta telha goteja,

sempre dá grão esta espiga, e a bola da rapariga

quer desfazer esta troca, e deixando a sua toca

quer fazer co Padre liga Briga, briga.

Largai a Mulata, e seja logo a bom partido,

que como tem delinqüido se quer acolher à igreja: porque todo o mundo veja,

que quando a carne inimiga tenta a uma rapariga,

quer no cabo, quer no rabo a Igreja vence ao diabo

com outra qualquer cantiga. Briga, briga.


A OUTRO VIGÁRIO DE CERTA FREGUESIA, CONTRA QUEM SE AMOTINAVAM OS FREGUESES POR SER MUYTO AMBICIOSO.


Reverendo vigário,

Que é título de zotes ordinário,

Como sendo tão bobo,

E tendo tão larguíssimas orelhas,

Fogem vossas ovelhas

De vós, como se fôsseis voraz Lobo.

O certo é, que sois Pastor danado,

E temo, que se a golpe vem de fouce, Vos há de cada ovelha dar um couce:

Sirva de exemplo a vosso desalinho,

O que ovelhas têm feito ao Padre Anjinho, Que por sua tontice, e sua asnia o tem já embolsado na euxovia;

Porém a vós, que sois fidalgo asneiro, Temo, que hão de fazer-vos camareiro.

Quisestes tosquear o vosso gado,

E saístes do intento tosqueado;

Não vos cai em capelo, O que o provérbio tantas vezes canta, Que quem ousadamente se adianta. Em vez de tosquear fica sem pêlo?

Intentastes sangrar toda a comarca,

Mas ela vos sangrou na veia d'arca

Pois ficando faminto, e sem sustento,

Heis de buscar a dente qual jumento

Erva para o jantar, e para a ceia,

E se talvez o campo a escasseia,

Mirrado heis de acabar no campo lhano, Fazendo quarentena todo o ano:

Mas então poderá vossa porfia Declarar aos Fregueses cada dia.

Sois tão grande velhaco,

Que a pura excomunhão meteis no saco:

Já diz a freguesia,

Que tendes de Saturno a natureza,

Pois os Filhos tratais com tal crueza,

Que os comeis, e roubais, qual uma harpia; Valha-vos; mas quem digo, que vos valha?

Valha-vos ser um zote, e um canalha:

Mixelo hoje de chispo, Ontem um passa-aqui do Arcebispo.

Mas oh se Deus a todos nos livrara

De Marão com poder, vilão com vara! Fábula dos rapazes, e bandarras, conto do lar, cantiga das guitarras.

Enquanto vos não parte algum corisco,

Que talvez vos despreza como cisco, E fugindo a vileza desse couro,

Vos vai poupando a cortadora espada,

Azagaia amolada,

A veloz seta, o rápido pelouro:

Dizei a um confessor dos aprovados, Vossos torpes pecados,

Que se bem o fazeis, como é preciso Fareis um dia cousa de juízo:

E uma vez confessado,

Como vos tenha Deus já perdoado,

Todos vos perdoaremos

Os escândalos mil, que de vós temos,

(continua...)

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