Por José de Anchieta (1563)
no firmamento; estira o vento das fúlgidas asas
e vencedor, aspira livre as auras celestes:
assim o jovem, seguido de seus valentes, expulsa
da superfície do rio as hordas todas dos inimigos.
Estes, apenas alcançam a terra, buscam velozes
os arraiais, precipitam-se desordenados qual no mar alto
o desencadear do Sul. O temor dá-lhes asas às pernas.
Mal se emboscaram nas elevadas trincheiras
obstruíram as entradas com troncos gigantes:
urram dentro, atroando os ares com bárbara grita.
Parecia que do céu os astros se despenhavam
fragorosamente ou que terrível tufão abatia
a floresta, rachando os robles estrondosamente.
Uns, da cabaça curva espetada de longos
e reboantes canudos, tiram sons cavernosos.
Outros sopram horrendamente em búzios recurvos
ecoando um som medonho: são os clarins dos selvagens.
Preparam as armas e nesse ínterim, quando um misto
de terror e de raiva os agita, eis que o herói
aborda a margem do rio e calca firme a areia.
Fixa a cada soldado seu posto, vibram os peitos de todos,
a passo acelerado avançam pelo longo da praia,
de armas em punho. Reluz o ferro das lanças,
a espada de dois gumes e o fuzil que as balas vomita
com horrível estrondo, quando sobre a pólvora salta
a faísca sedenta, levando ao inimigo rápida morte.
Lá avança pelo seco areal, a passo firme, Fernão,
esbelto mais que todos os outros , trazendo
como um sol prateado nas armas fulgentes.
Enérgico, ateia nos companheiros a chama da guerra,
e todos já próximos dos arraiais se atiram a um tempo,
a alma em fogo, decididos a romper a trincheira
à força de golpes, e acabar com essa gente odienta.
Postam-se em linhas de ataque, do peito indignado
rompem brados medonhos: não se atrevem os bárbaros
a sair em campo e terçar armas com os sitiantes.
Contentam-se com defender nos fortins e nas cercas
esperanças fagueiras. Pelas frestas, deixadas adrede,
arroja, uma chuva de flechas, no intuito
de impedir aos invasores o assalto dos muros.
Com não menor afinco os nossos atacam e tentam
entrar ora aqui, ora ali, lançando, furiosos, inúmeras balas
que a pólvora expele com fragor horripilante.
Voam os projéteis zunindo e abrem rombos nos troncos
e dizimam hordas selvagens. Em fileira cerrada
o general e seus jovens guerreiros investem, expondo
os corações valentes à morte. O braço esquerdo no escudo
resguarda-os das flechadas, enquanto o direito maneja
as armas ruidosas e rompe com o machado impiedoso
o muro de robles. A força as entradas; o ferro
rasga as trincheiras, arromba as seis voltas de lenhos,
arrancando os madeiros gigantes. Lá se escancaram
enormes abertas: atiram-se por elas com estrondo
os jovens todos, qual rio raivoso, depois que rompeu
com esforço aturado os diques, se espraia nos campos
rolando troncos, bosques inteiros, no turbilhão horroroso.
Repentinamente, eis que novo terror se apossa dos inimigos
ao verem que os heróis com mão de ferro romperam as cercas
e com machadinhas ferozes tudo abatem por dentro.
Ainda não se esgota a fúria selvagem: nos peitos magoados
estuam juntos medo e cólera. Correm todos a um ponto
e opondo troncos sustam os invasores e sem perda de tempo
cravam-no de mil flechas velozes e os cobrem de chagas.
Aos índios desesperados, acirra-os a certeza da morte.
Eis senão quando, desgarrando-se uma seta emplumada
corta o espaço silvando horrendamente, vindo cravar-se
pouco abaixo do peito de um soldado e lhe rasga
fundo as entranhas. Tomba ele mortalmente ferido
e exala para logo o derradeiro suspiro.
Rápido, o selvagem rearma o arco para nova flechada,
firma atrás o pé direito e os dois braços robustos distende
em sentido oposto: parte a seta ligeira a fincar-se
no corpo de um segundo e o prostra estendido por terra
em agonia. Ergue a horda selvagem um clamor de vitória,
vibram os peitos feros e de furor se avolumam.
Ao contemplar a morte cruel dos amigos valentes,
o coração magoado do herói e de seus companheiros
referve de dor e o fogo da vingança os abrasa
até os ossos. Atiram-se como essas feras da Índia
que, acostumadas a transportar no dorso gigante
fortins de madeira e homens armados para a batalha,
se enfurecem à vista do sangue, desordenam co’as patas
as fileiras inimigas e arrastam em medonha ruína
robustos soldados, escudos e capacetes empenachados.
Assim se inflamaram os guerreiros e a raivar se lançaram
contra os ferozes contrários, e atracando-os de perto
rasgam chagas mortais com as adagas em punho.
É tudo pressa, tudo azáfama: a este fende-lhe o peito
um golpe de espada e a ferida fatal lhe devassa
o abismo profundo; raivosamente o selvagem se vira
de borco para o chão natal, e morde a terra morrendo.
A outro atravessam as ilhargas com a ponta da lança.
A terra geme ao baque do peso; um soluço lhe arranca
golfadas de sangue e sacode os membros agonizantes.
A inúmeros outros, as finas espadas lhes varam
lados e intestinos; aparecem à luz as entranhas
e escapam as vísceras, conspurcando-se a terra.
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.