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#Contos#Literatura Brasileira

Conversão de um avaro

Por Machado de Assis (1878)

— Parece que a senhora ficou mal comigo.

— Pode ser.

— Por quê?

Rufina suspirou; e depois de um silêncio:

— Não me fale mais, não procure ver-me, adeus!...

Saiu.

Gil Gomes, atordoado com a primeira impressão, não pôde dar um passo. Mas, enfim, dominou-se e saiu em procura da viúva. Achou-a na sala a abraçar a prima. Quis falar-

lhe, chegou a dizer-lhe algumas palavras; mas Rufina não pareceu ouvir. Apertou a mão a todos. Quando chegou a vez do colchoeiro, foi um aperto, um só, mas um aperto que valia por todos os apertos do mundo, não que fizesse forte, mas porque era significativo. Gil Gomes saiu dali meia hora depois, num estado de agitação como nunca estivera em todos os longos dias de sua existência. Não foi logo para casa; era-lhe impossível dormir, e andar na rua sempre era economizar a vela. Andou cerca de duas horas, a ruminar umas idéias, a correr atrás de umas visões, a evaporar-se em fantasias de toda a espécie.

No dia seguinte, à hora do costume, estava na loja sem saber o que fazia. Custava-lhe a reconhecer os seus colchões. O dia, a agitação dos negócios, o almoço puseram alguma surdina às vozes do coração. O importuno calou-se modestamente ou, antes, velhacamente, para criar mais forças. Era tarde. Rufina tinha cravado no peito do colchoeiro a seta da dominação.

Era preciso vê-la.

Mas como?

Gil Gomes pensou nos meios de satisfazer essa necessidade imperiosa. A figura esbelta, forte, rechonchuda da prima de José Borges parecia estar diante dele a dizer-lhe com os olhos: Vai ver-me! vai ter comigo! vai dizer-me o que sentes!

Por fortuna de Gil Gomes a viúva fazia anos dali a três semanas. Ele foi um dos convidados. Correu ao convite da dama de seus pensamentos. A vizinhança, que conhecia os hábitos tradicionalmente caseiros de Gil Gomes, entrou a comentar as suas saídas freqüentes e a conjecturar mil coisas, com a fertilidade da gente curiosa e vadia. O fato, sobretudo, de o ver sair com uma sobrecasaca nova, por ocasião dos anos da viúva, pôs a rua em alvoroço. Uma sobrecasaca nova! era o fim do mundo. Que querem? A viúva valia a pena de um sacrifício por maior que fosse e aquele foi imenso. Três vezes recuou o colchoeiro estando à porta do alfaiate, mas três vezes insistiu. Ir-se embora, se fosse possível varrer-se-lhe da memória a figura da dama. Mas se ele a trazia presente! Se ela estava aí diante dele, a fitá-lo, a sorrir-lhe, a moer-lhe a alma, a despedaçar-lhe o coração! Veio a sobrecasaca; ele vestiu-a; achou-se elegante. Não chorou o dinheiro, porque só o dominava a idéia de ser contemplado pela viúva.

Esse novo encontro de Gil Gomes e Rufina foi a ocasião de se entenderem. Tantas atenções com ele! Tantos olhares para ela! Um e outro caminhavam rapidamente até esbarrarem no céu azul, como dois astros errantes e simpáticos. O colchoeiro estava prostrado. A viúva parecia vencida. José Borges favoreceu essa situação, descobrindo-a a ambos.

— Vocês estão meditando alguma coisa, disse ele, achando-se uma vez a olhar um para o outro.

— Nós? murmurou Rufina.

Este nós penetrou a alma do colchoeiro.

O colchoeiro fez duas ou três visitas à viúva, em ocasião que lá ia a família desta. Uma vez apresentou-se, sem que a família lá estivesse. Rufina mandou dizer que não estava em casa.

— Seriamente? perguntou ele à preta. Tua senhora não está em casa? — Ela mandou dizer que não, senhor, acudiu a boçal escrava.

Gil Gomes quis insistir; mas podia ser inútil; saiu com a morte em si. Aquela esquivança era um aguilhão, que ainda mais o irritou. A noite foi cruel. No dia seguinte apareceu-lhe José Borges.

— Podes falar comigo em particular? disse este.

— Posso.

Foram para os fundos da loja. Sentaram-se em duas cadeiras de pau. José Borges tossiu, meditou um instante. Custava-lhe ou parecia custar-lhe a entabular a conversa. Enfim, rompeu o silêncio:

— Tu foste ontem à casa de minha prima?

— Fui.

— Disseram-te que ela não estava em casa...

— Sim, a preta...

— A preta disse mais: deu a entender que minha prima estava, mas dera ordem de te dizer que não.

— Era falso?

— Era verdade.

— Mas então?...

— Eu te explico. Rufina sabe que tu gostas dela; tu deves saber que ela gosta de ti; todo o mundo sabe que vocês gostam um do outro. Ora, se lá fores quando nós estamos, bem...

Gil Gomes tinha-se levantado e dera quatro ou seis passos na salinha, sem ouvir o resto do discurso de José Borges, que teve em si o seu único auditório.

No fim de alguns minutos, o colchoeiro sentou-se outra vez e inquiriu o amigo: — Dizes então que eu gosto de tua prima?

— É visível.

— E que ela gosta de mim?

— Só um cego o não verá.

— Ela supõe isso?

— Vê e sente-o!

— Sente-o?

O colchoeiro esfregou as mãos.

— Gosta de mim? repetiu ele.

— E tu gostas dela.

— Sim, confesso que... Parece-te ridículo?

— Ridículo! Essa agora! Pois um homem como tu, dotado de verdadeiras e boas qualidades, há de parecer ridículo por gostar de uma senhora como Rufina?... — Sim, creio que não.

(continua...)

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