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#Contos#Literatura Brasileira

A Chave

Por Machado de Assis (1880)

E eis o dente do ciúme a trincar-lhe o coração, e o sangue a esfriar-lhe nas veias, e uma nuvem a cobrir-lhe os olhos. Não era para menos o caso. Ninguém adivinharia nessa moça quieta e sombria, sentada a um canto do sofá, a ler as páginas de um romance, ninguém adivinharia nela a borboleta ágil e volúvel de todos os dias. Alguma cousa devia ser; talvez a mordesse algum besouro. E esse besouro não era decerto o Luís Bastinhos; foi o que este pensou e foi o que o entristeceu.

Marcelina ergueu os ombros.

— Alguma cousa que a incomoda, continuou ele.

Um silêncio.

— Não?

— Talvez.

— Pois bem, disse Luís Bastinhos com calor e animado por aquela meia confidência; pois bem, diga-me tudo, eu saberei ouvi-la e terei palavras de consolação para as suas dores. Marcelina olhou um pouco espantada para ele, mas a tristeza dominou outra vez e deixou-se estar calada alguns instantes: finalmente pôs-lhe a mão no braço, e disse que lhe agradecia muito o interesse que mostrava, mas que o motivo de tristeza era-o só para ela e não valia a pena contá-lo. Como Luís Bastinhos teimasse para saber o que era, contou a moça que lhe morrera, nessa manhã, o mico.

Luís Bastinhos respirou à larga. Um mico! um simples mico! Era pueril o objeto, mas para quem o esperava terrível, antes assim. Ele entregou-se depois a toda a sorte de considerações próprias do caso, disse-lhe que não valia o bicho a pureza dos belos olhos da moça; e daí a escorregar uma insinuação de amor era um quase nada. Ia a fazê-lo: chegou o major.

Oito dias depois houve em casa do major um sarau — "uma brincadeira" como disse o próprio major. Luís Bastinhos foi; estava porém arrufado com a moça: deixou-se ficar a um canto; não se falaram durante a noite inteira.

— Marcelina, disse-lhe no dia seguinte o pai; acho que tratas às vezes mal o Bastinhos. Um homem que te salvou da morte.

— Que morte?

— Da morte na Praia do Flamengo.

— Mas, papai, se a gente fosse a morrer de amores por todas as pessoas que nos salvam da morte...

— Mas quem te fala nisso? digo que o tratas mal às vezes...

— Às vezes, é possível.

— Mas por quê? ele parece-me um bom rapaz.

Nada mais lhe respondendo a filha, entrou o major a bater com a ponta do pé no chão, um pouco enfadado. Um pouco? talvez muito. Marcelina destruía-lhe as esperanças, reduzia-lhe a nada o projeto que ele acalentava desde algum tempo, — que era casar os dous; — casá-los ou uni-los pelos "doces laços do himeneu", que todas foram as suas próprias expressões mentais. E vai a moça e destrói-lho. O major sentia-se velho, podia morrer, e quisera deixar a filha casada e bem casada. Onde achar melhor marido que o Luís Bastinhos?

— Uma pérola, dizia ele a si mesmo.

E enquanto ele ia forjando e desforjando esses projetos, Marcelina suspirava consigo mesma, e sem saber por que; mas suspirava. Também esta pensava na conveniência de casar e casar bem; mas nenhum homem lhe abrira deveras o coração. Quem sabe se a fechadura não servia a nenhuma chave? Quem teria a verdadeira chave do coração de Marcelina? Ela chegou a supor que fosse um bacharel da vizinhança, mas esse casou dentro de algum tempo; depois desconfiara que a chave estivesse em poder de um oficial de Marinha. Erro: o oficial não trazia chave consigo. Assim andou de ilusão em ilusão, e chegou à mesma tristeza do pai. Era fácil acabar com ela: era casar com o Bastinhos. Mas se o Bastinhos, o circunspecto, o melancólico, o taciturno Bastinhos não tinha a chave! Equivalia a recebê-lo à porta sem lhe dar entrada no coração.

CAPÍTULO VI

Cerca de mês e meio depois fazia anos o major, que, animado pelo sarau precedente, quis comemorar com outro aquele dia. "Outra brincadeira, mas desta vez rija", foram os próprios termos em que ele anunciou o caso ao Luís Bastinhos, alguns dias antes.

Pode-se dizer e acreditar que a filha do major não teve outro pensamento desde que o pai lho comunicou também. Começou por encomendar um rico vestido, elegeu costureira, adotou corte, coligiu adornos, presidiu a toda essa grande obra doméstica. Jóias, flores, fitas, leques, rendas, tudo lhe passou pelas mãos, e pela memória e pelos sonhos. Sim, a primeira quadrilha foi dançada em sonhos, com um belo cavalheiro húngaro, vestido à moda nacional, cópia de uma gravura da Ilustração Francesa, que ela vira de manhã. Acordada, lastimou sinceramente que não fosse possível ao pai encomendar, de envolta com os perus da ceia, um ou dous cavalheiros húngaros — entre outros motivos porque eram valsadores intermináveis. E depois tão bonitos!

— Sabem que eu pretendo dançar no dia 20? disse o major uma noite, em casa. — Você? retorquiu-lhe um amigo velho.

— Eu.

— Por que não? assentiu timidamente o Luís Bastinhos.

— Justamente, continuou o major voltando-se para o salvador da filha. E o senhor há de ser o meu vis-à-vis...

— Eu?

— Não dança?

— Um pouco, retorquiu modestamente o moço.

— Pois há de ser o meu vis-à-vis.

(continua...)

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