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#Contos#Literatura Brasileira

A Melhor das noivas

Por Machado de Assis (1887)

José via o perigo tanto como D. Joana; só não viu que ela lhe contara tudo, para havê-lo de seu lado e fazê-lo trabalhar por desfazer um laço quase feito. O medo dá às vezes coragem, e um dos maiores medos do mundo é o de perder uma herança. José sentiu-se resoluto a empregar todos os esforços para obstar o casamento do tio. D. Lucinda foi efetivamente jantar em casa de João Barbosa. Este não cabia em si de contente desde que se levantou. Quando D. Joana foi levar-lhe o café do costume, ele desfez-se em elogios à noiva.

— A senhora vai vê-la, D. Joana, vai ver o que é uma pessoa digna de todos os respeitos e merecedora de uma afeição nobre e profunda.

— Quer mais açúcar?

— Não. Que graça! que maneiras, que coração! Não imagina que tesouro é aquela mulher! Confesso que estava longe de suspeitar tão raro conjunto de dotes morais. Imagine...

— Olhe que o café esfria...

— Não faz mal. Imagine...

— Creio que há gente de fora. Vou ver.

D. Joana saiu; João Barbosa ficou pensativo.

— Coitada! A idéia de que vai perder a minha estima não a deixa um só instante. In petto não aprova talvez este casamento, mas não se atreveria nunca a dizê-lo. É uma alma extremamente elevada!

D. Lucinda apareceu perto das quatro horas. Ia luxuosamente vestida, graças a algumas dívidas feitas à conta dos futuros cabedais. A vantagem daquilo era não parecer que João Barbosa a tirava do nada.

Passou-se o jantar sem incidente nenhum; pouco depois de oito horas, D. Lucinda retirou se deixando encantado o noivo. D. Joana, se não fossem as circunstâncias apontadas, devia ficar igualmente namorada da viúva, que a tratou com uma bondade, uma distinção verdadeiramente adoráveis. Era talvez cálculo; D. Lucinda queria ter por si todos os votos, e sabia que o da boa velha tinha alguma consideração.

Entretanto, o sobrinho de João Barbosa, que também ali jantara, apenas a noiva do tio se retirou para casa foi ter com ele.

— Meu tio, disse José, reparei hoje uma coisa.

— Que foi?

— Reparei que se o senhor não tiver conta em si é capaz de ser embaçado. — Embaçado?

— Nada menos.

— Explica-te.

— Dou-lhe notícia de que a senhora que hoje aqui esteve tem idéias a seu respeito. — Idéias? Explica-te mais claramente.

— Pretende desposá-lo.

— E então?

— Então, é que o senhor é o quinto ricaço, a quem ela lança, a rede. Os primeiros quatro perceberam a tempo o sentimento de especulação pura, e não caíram. Eu previno-o disso, para que não se deixar levar pelo conto da sereia, e se ela lhe falar em alguma coisa...

João Barbosa que já estava vermelho de cólera, não se pôde conter; cortou-lhe a palavra intimando-o a que saísse. O rapaz disse que obedecia, mas não interrompeu as reflexões: inventou o que pôde, deitou cores sombrias ao quadro, de maneira que saiu deixando o veneno no coração do pobre velho.

Era difícil que algumas palavras tivessem o condão de desviar o namorado do plano que assentara; mas é certo que foi esse o ponto de partida de uma longa hesitação. João Barbosa vociferou contra o sobrinho, mas, passado o primeiro acesso, refletiu um pouco no que lhe acabava de ouvir e concluiu que seria realmente triste, se ele tivesse razão. — Felizmente, é um caluniador! concluiu ele.

D. Joana soube da conversa havida entre João Barbosa e o sobrinho, e aprovou a idéia deste; era necessário voltar à carga; e José não se descuidou disso. João Barbosa confiou à caseira as perplexidades que o sobrinho buscava lançar em seu coração,

— Acho que ele tem razão, disse ela.

— Também tu?

— Também eu, e se o digo é porque o posso dizer, visto que desde hoje estou desligada desta casa.

D. Joana disse isto levando o lenço aos olhos, o que partiu o coração de João Barbosa em mil pedaços; tratou de a consolar e inquiriu a causa de semelhante resolução. D. Joana recusou explicar; afinal estas palavras saíram de sua boca trêmula e comovida: — É que... também eu tenho coração!

Dizer isto e fugir foi a mesma coisa. João Barbosa ficou a olhar para o ar, depois dirigiu os olhos a um espelho, perguntando-lhe se efetivamente não era explicável aquela declaração.

Era.

João Barbosa mandou-a chamar. Veio D. Joana e arrependida de ter ido tão longe, tratou de explicar o que acabava de dizer. A explicação era fácil; repetiu que tinha coração, como o sobrinho de João Barbosa, e não podia, como o outro, vê-lo entregar-se a uma aventureira.

— Era isso?

— É duro de o dizer, mas cumpri o que devia; compreendo porém que não posso continuar nesta casa.

João Barbosa procurou apaziguar-lhe os escrúpulos; e D. Joana deixou-se vencer, ficando.

Entretanto, o noivo sentia-se um tanto perplexo e triste. Cogitou, murmurou, vestiu-se e saiu.

Na primeira ocasião em que se encontrou com D. Lucinda, esta, vendo-o triste, perguntou-lhe se eram incômodos domésticos.

— Talvez, resmungou ele.

— Adivinho.

— Sim?

— Alguma que lhe fez a caseira que o senhor lá tem?

— Por que supõe isso?

D. Lucinda não respondeu logo; João Barbosa insistiu.

— Não simpatizo com aquela cara.

— Pois não é má mulher.

— De aparência, talvez.

— Parece-lhe então...

— Nada; digo que bem pode ser alguma intrigante...

— Oh!

— Mera suposição.

— Se a conhecesse havia de lhe fazer justiça.

(continua...)

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