Por José de Anchieta (1563)
a que vinha socorrer ainda a tempo, penetra
na foz espaçosa de grande rio, e remando
contra o ímpeto da corrente veloz, se dirige
ao acampamento inimigo. Aí ajuntara o gentio
forças vindas de toda a região em redor.
Das fortificações, umas se ocultam em selvas sombrias
do lado em que o sol, deixando o zênite, se engolfa no plaino;
outras, escondidas juntos dos litorais arenosos,
ouvem o troar das ondas que se enrolam e quebram.
O melhor da mocidade foi destinada a esses lugares:
ergueram aí, em vasta construção, três fortalezas
cercadas de larga trincheira de troncos gigantes.
Rodeavam cada um dos fortes seis voltas de lenhos,
robles descomunais, fincados na terra, ligados
a madeiras transversais com cipós da floresta.
Era um muro soberbo: duas torres e três baluartes
o reforçavam de cada lado; neles estreitas janelas,
quais furos invisíveis, foram deixadas, por onde
pudesse o arco estridente soltar a seta ligeira,
causando com golpes traiçoeiros feridas de morte.
Aí se ajuntara toda a juventude guerreira
de sangue borbulhante e sedento de lutas infames.
Brande as armas feroz: o arco e as setas velozes,
o tacape ornado de penas várias, alisado e polido
pela mão do bárbaro com o ferro ou dente afiado
do porco montês: em todas as suas ferozes usanças
é a arma que os serve. Têm também impenetráveis escudos,
couros peludos, arrancados ao dorso das feras
e endurados ao sol. Pintam os membros robustos
com as cores da tribo: tingem com listas vermelhas
as faces, a fronte e as meias pernas; o resto do corpo
com riscas pretas, tão bem enlaçadas, membro por membro,
que imita a pele pintada verdadeiros vestidos,
que em nada desmerecem dos que, com o requinte da arte,
borda a agulha na mão habilidosa do artista,
nem das redes caprichosas, tecidas de fios variados.
Outros depenam o peito e as costas de inúmeras aves
e tingindo-lhes as penas de variadíssimas cores
colam-nas ao corpo, untado todo de visgo.
Outros ornam o topete com asas de pássaros
e dependuram muitos enfeites dos penteados cabelos.
Com estes e muitos outros adereços, medonhos e feios,
cobrem os membros nus os selvagens ferozes.
Ao vê-los o herói, poderosos em número e armas,
aí reunidos para saquear barbaramente
a gente lusitana toda, estas palavras amargas
disse cheio de indignação: “eis aí, companheiros,
as hordas cruéis que distilam dos peitos malvados
o veneno mortal do furor e do ódio implacável
e nos ameaçam com a guerra o completo extermínio.
Contra nós se arrojarão em bloco cerrado,
com todas as forças que a raiva esporeia.
Cumprirão seu desígnio nefando, se em estréia brilhante
nossas armas não lhes quebrarem o furor sanguinário.
Daqui nasceu toda a guerra. Portanto com peito invencível
lancemo-nos, todos, contra as hostes selvagens.
Adiantemo-lhes a morte que contra nós preparavam,
e que eles merecem. Eis a hora dos valentes e bravos!
Alento e energia nos dará o Deus poderoso
que domina as alturas. Sua mão vingadora
sobre o inimigo desumano descerá justiceira.
Vingando as ofensas sacrílegas, sua cólera santa
dizimará com a morte as alcatéias ferozes.”
Terminada esta arenga, com armas divinas
robustece o peito: com cuidado examina a consciência
e a seguir aos pés do sacerdote de Deus se ajoelha,
para isso o chefe piedoso consigo o trouxera,
e liberta-se do peso das culpas que talvez contraíra.
Entusiasmaram-se os soldado: a fala do chefe
calara fundo nas almas. Seguindo-lhe o lúcido exemplo
purificaram os corações de todas as manchas
com a confissão. Lavra nos peitos agora incontido
o fogo da guerra, e justa ira lhes ferve nas veias.
Já a noite avançada vencera metade do curso
e transmontando-se inclinara para os pousos celestes.
À voz do chefe toda essa mocidade guerreira
atira-se às armas, rema contra a corrente, ao encontro
do arraial inimigo. O brilho sinistro das armas
invade o rio. Branquejam as águas da espuma dos remos.
Saem-lhe ao caminho correndo os cruéis inimigos
em chusmas: uns arrojam da terra chuvas de setas,
outros coalham as águas de igaras ligeiras
e de perto esticam os fortes arcos. Voam zunindo
de toda a parte flechas em profusão, gemem os arcos
ao romper da seta emplumada, silvam os ares
à passagem das flechas, aturdindo os ouvidos dos bravos.
Ora a este, ora àquele procura alvejar com golpe certeiro
a turba furiosa: com a seta veloz semeia feridas.
Fremindo de raiva luta por afastar aos invasores.
Estes porfiam em contrário e avançam cortando
a corrente adversa do rio: com incessantes descargas,
que a pólvora arroja entre nuvens de negra fumaça
e estrondo soturno das parias, castigam o arraial inimigo.
Arrebatado de ardor, com a voz, com o braço
o terrível Fernão, seguido dos seus bravos, acossa,
dobra e afugenta das águas a chusma dos bárbaros.
Como quando das regiões polares o Norte impetuoso
se arremessa ao encalço das nuvens pelos espaços;
vencidas, elas debandam em rápida fuga,
varrendo os nimbos da altura, o azul imenso floresce
(continua...)
ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa.