Por Machado de Assis (1878)
— Nunca mais o vi desde aquela noite, disse ela baixinho ao colchoeiro daí a cinco minutos.
— É verdade, concordou Gil Gomes sem saber que respondesse.
Rufina reclinou-se na cadeira agitando o leque, meio voltada para ele, que respondia trêmulo.
Não tardou que a dona da casa convidasse a toda a gente a passar à sala de jantar. Gil Gomes levantou-se com idéia de dar o braço à viúva; José Borges facilitou-lhe a execução.
— Então, que é isso? Dê o braço à prima. Inácio, dá o braço a Mafalda. Eu levo a comadre.... valeu? Você, Aninha...
— Eu vou com o sr. Pantaleão.
O sr. Pantaleão era um dos dois amigos convidados por José Borges, além dos parentes. Não vale a pena falar dele; basta dizer que era um homem silencioso; não tinha outro traço característico.
Na mesa, Gil Gomes foi sentado ao pé de Rufina. Ele estava aturdido, satisfeito, desvairado. Um gênio invisível atirava-lhe faíscas aos olhos; e entornava-lhes pelas veias abaixo um fluido, que ele supunha ser celestial. A viúva parecia, na verdade, mais bela do que nunca; fresca, repousada, ostentosa. Ele sentia-lhe o vestido a roçar-lhe as calças; via-lhe os olhos embeberem-se nos seus. Era um jantar aquilo ou um sonho? Gil Gomes não podia decidir.
José Borges alegrou a mesa como podia e sabia, sendo acompanhado pelos parentes e pela comadre. Dos dois estranhos, o colchoeiro pertencia à viúva e o silencioso era todo do seu estômago. José Borges tinha um leitão e um peru, eram as duas peças melhores do jantar, dizia ele, que já as anunciara desde o princípio. Começaram as saúdes; fez-se a de Mafalda, a de D. Ana e de José Borges, a da comadre, a da viúva. Esta saúde foi proposta com muito entusiasmo por José Borges e não menos entusiasticamente correspondida. Entre Rufina e Gil Gomes foi trocado um brinde particular, de copo batido. Gil Gomes, apesar da resolução amorosa que se operava nele, comeu à farta. Um bom jantar era coisa para ele fortuita ou problemática. Só assim, de ano em ano. Por isso não deixou passar a ocasião. O jantar, o vinho, a palestra, a alegria geral, os olhos da viúva, talvez a pontinha de seu pé, tudo contribuiu para desatar os últimos nós à língua do colchoeiro. Ele ria, falava, dizia graças, fazia cumprimentos à dona, arriava todas as bandeiras. À sobremesa, quis por força que ela comesse uma pêra, descascada por ele; e a viúva, para lhe pagar a fineza, exigiu que ele comesse metade.
— Aceito! exclamou o colchoeiro fora de si.
A pêra foi descascada. Partiu-a a viúva, e os dois comeram a fruta, de parceria, com os olhos modestamente no prato. José Borges, que não perdeu a cena de vista, parecia satisfeito com a harmonia dos dois. Ergueu-se para fazer uma saúde ao estado conjugal. Gil Gomes correspondeu ruidosamente; Rufina nem tocou no copo.
— Não correspondeu ao brinde do seu primo? perguntou Gil Gomes. — Não.
— Por quê?
— Porque não posso, suspirou a viúva.
— Ah!
Um silêncio.
— Mas... por que... isto é... que calor!
Estas palavras incoerentes, proferidas pelo colchoeiro, não pareceu que as ouvisse a viúva. Ela olhava para a borda da mesa, séria e fixamente, como quem encara o passado e o futuro.
Gil Gomes achou-se um pouco acanhado. Não compreendia muito o motivo do silêncio de Rufina e perguntava a si próprio se ele havia dito alguma tolice. De repente, levantaram se todos. A viúva tomou-lhe o braço.
Gil Gomes sentiu o braço de Rufina e estremeceu da cabeça até os pés. — Por que motivo ficou triste ainda agora? perguntou ele.
— Eu?
— Sim.
— Fiquei triste?
— E muito.
— Não me lembro.
— Talvez fosse zangada.
— Por quê?
— Não sei; pode ser que eu a ofendesse.
— O senhor?
— Eu sim.
Rufina negou com os olhos, mas uns olhos que o colchoeiro antes quisera fossem duas espadas, porque atravessariam tão cruelmente o coração, por mais morto que o deixassem.
— Por quê?
Rufina apertou muito os olhos.
— Não me pergunte, disse ela afastando-se dele rapidamente.
O colchoeiro viu-a afastar-se e levar-lhe o coração na barra do vestido. Seu espírito sentiu pela primeira vez a vertigem conjugal. Ele, que deixara de fumar por economia, aceitou um charuto de José Borges para distrair-se, e fumou-o todo sem poder arrancar de si a imagem da viúva. Rufina, entretanto, parecia evitá-lo. Três vezes quis ele entabular conversação sem conseguir detê-la.
— Que é isso? perguntou o colchoeiro consigo.
Aquele procedimento deixou-o ainda mais perplexo. Ficou triste, amuado, não sentiu correr as horas. Eram onze quando deu acordo de si. Onze horas! E ele que quisera assistir ao fechar a porta! A casa entregue ao caixeiro tão longo tempo, era um perigo; pelo menos, uma novidade que podia ter graves conseqüências. Circunstância que ainda mais lhe ensombrou o espírito. Irritado consigo mesmo, fugiu à companhia dos outros e foi sentar-se em uma saleta, deu corda a uma caixa de música que ali achou e sentou-se a ouvi-la.
De repente, foi interrompido pelo passo forte da viúva, que fora buscar o xale para sair. — Vai embora? perguntou ele.
— Vou.
— Tão cedo!
Rufina não respondeu.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Conversão de um avaro. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1878.