Por Machado de Assis (1875)
— Bravo, Luísa! Estás poeta! exclamou Isabel. Já falas em areias do mar!
— Pois olha, não namoro nenhum poeta nem homem do mar. — Quem sabe?
— Sei eu.
— É então?...
— Um rapaz que tu conheces!
— Já sei, é o Avelar.
— Deus nos acuda! exclamou Luísa. Um homem vesgo. — O Rocha?
— O Rocha anda todo caído pela Josefina.
— Sim?
— É uma lástima.
— Nasceram um para o outro.
— Sim, ela é uma moleirona como ele.
As duas moças gastaram assim algum tempo a tasquinhar na pele de pessoas que nós não conhecemos nem precisamos disso, até que voltaram ao assunto capital da conversa.
— Já vejo que não pode adivinhar quem é o meu namorado, disse Luísa. — Nem você o meu, observou Isabel.
— Bravo! então o tenente...
— O tenente está pagando. É muito natural que as rio-grandenses o tenham encantado. Pois agüente-se...
Enquanto Isabel dizia estas palavras, Luísa ia folheando o álbum de retratos que estava sobre a mesa. Chegando à folha onde sempre vira o seu retrato, a moça estremeceu. Isabel notou-lhe o movimento.
— Que é? disse ela.
— Nada, respondeu Luísa fechando o álbum. Tiraste o meu retrato daqui?
— Ah! exclamou Isabel, isso é uma história singular. O retrato foi passar às mãos de terceira pessoa, a qual afirma que fui eu que lho levei alta noite... Ainda não pude descobrir esse mistério... Luísa já ouviu de pé estas palavras. Seus olhos, muito abertos, fitaram-se no rosto da amiga.
— Que é? disse esta.
— Sabes bem o que estás dizendo?
— Eu?
— Mas isso foi o que me aconteceu também com o teu retrato... Naturalmente era zombaria comigo e contigo... Essa pessoa... — Foi o Júlio Simões, o meu namorado... Aqui devia eu pôr uma linha de pontos para significar o que se não pode pintar, o espanto das duas amigas, as diferentes expressões que tomou a fisionomia de cada uma delas. Não tardaram as explicações; as duas rivais reconheceram que o seu namorado comum era pouco mais ou menos um patife, e que o dever de honra e de coração era tomar dele uma vingança.
— A prova de que ele nos enganava uma à outra, observava Isabel, é que os nossos retratos apareceram lá e foi ele naturalmente quem os tirou.
— Sim, respondeu Luísa, mas é certo que eu sonhei alguma cousa que combina com a cena que ele alega.
— Também eu...
— Sim? Eu sonhei que me haviam falado do namoro dele com você, e que, tirando o retrato do álbum, fora levá-lo à casa dele. — Não é possível! exclamou Isabel. O meu sonho foi quase assim, ao menos no final. Não me disseram que ele tinha namoro com você; mas eu mesma vi e então fui levar o retrato...
O espanto aqui foi ainda maior que da primeira vez. Nem estavam só espantadas as duas amigas; estavam aterradas. Embalde procuravam explicar a identidade do sonho, e mais que tudo a coincidência dele com a presença dos retratos em casa de Júlio e a narração que este fizera da noturna aventura.
Estavam assim nesta duvidosa e assustadora situação, quando as mães vieram em auxílio delas. As duas moças, estando à janela, ouviram-lhes dizer:
— Pois é verdade, minha rica srª Anastácia, estou no mesmo caso da senhora. Creio que a minha filha é sonâmbula, como a sua. — Tenho uma pena com isto!
— E eu então!
— Talvez casando-as...
— Sim, pode ser que banhos de igreja...
Informadas assim as duas moças da explicação do caso, ficaram um tanto abaladas; mas a idéia de Júlio e suas travessuras tomou logo o lugar que lhe competia na conversa das duas rivais.
— Que pelintra! exclamavam as duas moças. Que velhaco! que pérfido! O coro de maldições foi ainda mais longe. Mas tudo acaba neste mundo, principalmente um coro de maldições; o jantar interrompeu aquele; as duas moças foram de braço dado para a mesa e afogaram as suas mágoas num prato de sopa.
CAPÍTULO V
Júlio, sabendo da visita, não se atreveu a ir encontrar as duas moças juntas. No pé em que as cousas se achavam era impossível evitar que descobrissem tudo, pensava ele.
No dia seguinte porém foi de tarde à casa de Isabel, que o recebeu com muita alegria e ternura.
"Bom! pensou o namorado, nada contaram uma à outra." — Engana-se, disse Isabel adivinhando pela alegria do rosto dele qual era a reflexão que fazia. Pensa naturalmente que Luísa nada me disse? Disse-me tudo, e eu nada lhe ocultei...
— Mas...
— Não me queixo do senhor, continuou Isabel com indignação; queixo me dela que devia ter percebido e percebeu o que entre nós havia, e apesar disso aceitou a sua corte.
— Aceitou, não; posso dizer que fui compelido.
— Sim?
— Agora posso falar-lhe com franqueza; a sua amiga Luísa é uma namoradeira desenfreada. Eu sou rapaz; a vaidade, a idéia de passatempo, tudo isso me arrastou, não a namorá-la, porque eu era
incapaz de esquecer a minha formosa Isabel; mas a perder algum tempo...
— Ingrato!
— Oh! não! nunca, a boa Isabel!
Aqui começou uma renovação de protestos da parte do namorado, que declarou amar mais que nunca a filha de D. Anastácia.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casa, Não Casa. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1875-1876.